terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Buraco

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
(O Buraco do Espelho – Arnaldo Antunes e Edgar Scandurra)



Canetas, clipes, pilhas palito, cacos de vidro, a cabeça de um anjo sem asas, retratos pisados, CDs quebrados, cortinas rasgadas, almofadas espalhadas. Ligar para o Jorge amanhã com urgência. IPVA 2011, Gol Preto, R$1.120,00. Guia da TV a cabo mês de agosto. A realizar-se no dia quinze de dezembro de 2010 às dezoito horas na Igreja Sagrado Coração. Chaves, chaveiros, lembrancinhas. Fui para Aparecida e lembrei-me de você. Torre Eiffel, Mickey Mouse, areias de Maceió. Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Controle remoto, fios, fones de ouvido, mais fios. Um único Sonho de Valsa quebrado em meio a cacos de cristal.
            Iogurte de morango no chão, latas de cerveja abertas, alface, temperos, panelas espalhados pelo chão. Comprar produtos de limpeza, sabonetes, arroz, feijão, café, açougue e varejão. Copos sujos na pia e bitucas de cigarro sobre a mesa. Toalhas de renda desfiadas. Gavetas retiradas, talheres remexidos, geladeira aberta. Inglês segundas e quartas e violão nas terças e quintas. Imã de caranguejo faltando uma perna.
            Roupas, muitas roupas sobre a cama e o chão também. Lingerie, pijama, quimono, terno, vestido. Vidro de perfume estilhaçado envolto por uma poça. Batom, blush, sombra, todas as cores pelo espelho trincado. Porta-jóias com bailarina solitária. Secador de cabelos, gel de barbear, gilete e chinelos. Sapatos desencaixotados.
            Sorriso de pasta de dente no Blindex do banheiro. Pílulas, gotas, bolinhas, frascos e emplastos. Papel higiênico desenrolado. Toalhas de banho sujas e torneira aberta. Fio dental caído em meio às fezes no bidê. Uma nuvem de algodão e cotonetes.
            Livros, enciclopédia e revistas desfolhados. Edital do concurso da Promotoria do Estado. Apostila, lápis, grafite, grampos e papel. Papel por toda parte. Miniaturas reduzidas a pó e manuais velhos de eletrônicos. Eu te amo, Feliz Dia dos Namorados. Lembrança da Primeira Eucaristia. Certidões, passaporte, recibos e diplomas.
Invadido, inválido, com mãos, pés e coração atados. Seu corpo estava ali escancarado como se todos os órgãos tivessem sido arrancados e estivessem ali expostos para uma platéia masoquista que fazia gosto em ver derramar cada gota do seu sangue. Tamanho era seu nojo que sentiu uma espuma sair do seu estômago rumo à boca. Quis vomitar, mas nem para isso tinha forças. Havia sido violentado, dilacerado e agonizava sob os restos mortais de uma vida agora apunhalada e espezinhada. Era como se o mundo conhecesse os seus maiores segredos e manias, e conhecendo-os, risse da sua cara com deboche. Sentindo-se sujo, deixou-se escorregar no vão da porta. Fechou os olhos e os abriu várias vezes na tentativa de ser somente uma ilusão. Deixou a cabeça cair e ali ficou durante algum tempo até ouvir o barulho das sirenes. Prejuízo financeiro incalculável e um rombo desmedido na alma. Um buraco que TVs de plasma, laptops e milhares de oncinhas não seriam capazes de tapar. Tinha no peito uma fechadura como aquelas utilizadas por primos adolescentes para observar intimidades e gozar de alegria com tamanha astúcia. Um buraco negro aberto à marretadas com direito à visitação e cochichos dos vizinhos. Uma alma esburacada. Era isso que lhe restava.  

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