domingo, 31 de outubro de 2010

Meu cordel

Se me dá licença agora
Eu tenho que passar
O cordel da minha vida
Preciso pendurar.

Almoço de Domingo


"Família! Família!
Papai, mamãe, titia
Família! Família!
Almoça junto todo dia"
(Família – Arnaldo Antunes e Tony Bellotto)





















Acordo com o cheiro do alho queimando
Começou a tarantela dos garfos e colheres
Panelas e bacias a postos
Que o meio-dia está chegando

O jornal de domingo repousa na estante
Ninguém olha pra TV
Com controles descontrolados
Alguém desliga esse troço falante?

Quadrados avermelhados
Cobrem a mesa arrumada
Pratos, copos e outros apetrechos
Já estão enfileirados

O frango cheira e o macarrão ferve
As vozes se exaltam, os estômagos se apertam
Cabelo branco e impaciente
Sem demora já se serve

Ouço conversa, fofoca e risada
Faíscas e farpas são trocadas
Passe a Coca, por favor
Já não estou entendendo nada

Um docinho chega pra acalmar
O careca se levanta
Calma! O café já vai sair
E o cardápio completar

De volta no armário toda a louça é colocada
O silêncio vai reinando,
A Segunda vai chegando
Foi-se embora a parentada.

Vai chover

“Abre o guarda chuva que hoje o sol desistiu de sair.”
(Sweet Jardim – Tiê)

pingo
pingo pingo
pingo pingo pingo
pingo pingo pingo pingo
pingo pingo pingo pingo pingo
pingo pingo pingo pingo pingo pingo
G
U
R
D
A
                   C H U V A

Brincar de suspirar

“Alma em suspiro
Pelo encontro
do que fica
sempre mais longe.”
(Henriqueta Lisboa)



Suspiro...

Suspiro e sorrio
Sorrio e me mostro
Me mostro e me dôo
Me dôo e me aceitam
Me aceitam e me espremem
Me espremem e me devolvem
Me devolvem e me esquecem

Suspiro...

Suspiro e choro
Choro e me escondo
Me escondo e me fecho
Me fecho e me isolo
Me isolo e me condeno
Me condeno e me enlouqueço
Me enlouqueço, piro
Piro...

Suspiro...

Vamos jogar peteca?

“Somos nessa época os poucos empenhados em atentar contras as coisas, em criar em nós mesmos espaços para a vida.”
                                  (O Pesa-Nervos – Artaud)

Se pensarmos bem, as relações humanas é um verdadeiro jogo de peteca e eu nunca fui uma grande esportista. Eu nunca sei o que fazer quando a peteca está em minhas mãos. Acho que ninguém sabe, porque assim que a recebem, já arrumam um jeito de passá-la para frente nem que para isso precise de uns movimentos um tanto quanto estranhos e retorcidos e um bocado de caretas.

Alguns esperam e planejam uma jogada genial. Outros jogam sem pensar duas vezes. Outros ainda raciocinam planos mirabolantes para surpreender o adversário. O relacionamento entre as pessoas não deveria ser um jogo cujo principal objetivo é se livrar do outro o mais rápido possível e ficar numa posição confortável. Quanta beleza estamos perdendo, quantas cores, quantas formas, afinal de contas, às vezes, a peteca surge de lugares inesperados, de formas violentas e suas penas podem machucar, mas sabem ser belas as danadas.

As amizades, os amores, a convivência humana hoje se tornaram o Rolland Garros das petecas. Temos pressa, não temos tempo, temos medo, não temos esperança, temos facilidade, não temos confiança, temos jogo de peteca, não temos amor. Amizades superficiais, amores passageiros, vida apagada. Quando é que acaba o jogo? Porque eu não quero mais jogar peteca, eu quero viver!

sábado, 30 de outubro de 2010

Medo

“O ar está repleto dos nossos gritos.”
(Esperando Godot – Samuel Beckett)



Estou sozinho e está escuro
Meus pés arrastam, meu corpo pesa
Fico ofegante
Já nem lembro mais da reza

Dou um passo a mais
A boca se cala e os ouvidos gritam
Algo me empurra
Meus sentidos se agitam

Destacam olhos petrificados
Na face empalidecida
O suor escorre
Na pele enrijecida

Claridade, alvura, exatidão
Se pudesse acender a luz
Minha visão encontraria
O que tanto me seduz!

Papo de criança

“Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome.”
                            (Esquadros – Adriana Calcanhoto)




Liquidificador ligado.
- Mãe, por que o céu é azul?
Liquidificador desligado.
- Ah, porque tudo tem sua cor, o céu, as árvores, os passarinhos ... cada coisa tem sua cor.
- Ah, entendi ... Mas por que azul mãe?
- Ai meu filho, é azul porque o céu é como um espelho e ele reflete a cor da água dos mares, das lagoas, dos rios, das represas ... que é tudo azul.
-Ah ... mas se o céu é um espelho, porque eu não me vejo lá quando olho pra cima?
- É por que o céu é o espelho das águas.
- Mas a água não é sem cor? Então o céu tinha que ser sem cor também!
- Sim meu filho, mas quando tem muita água junta parece que é azul e no nosso planeta tem muita água junta.
- Então por que a professora da escola falou que a gente não pode gastar água?
- Porque tem muita gente que não tem tanta água como a gente tem.
- Mas por que, se você disse que o nosso planeta tem muita água junta?
- Porque onde eles moram é muito calor e o calor seca a água.
- Por que é muito calor lá?
- Porque São Pedro deixa a torneira do céu menos tempo aberta por lá.
- Quem é São Pedro, mamãe?
- Ele é amigo de Deus.
- Então Deus é malvado?
- Claro que não meu filho, porque seria?
- Ué, porque Ele manda o amigo Dele fechar a torneira bem no lugar mais calor do mundo!
- Olha meu filho, Deus é muito bom pra nós. Ele nos dá tudo o que precisamos. Água, comida, casa ... Somos nós os homens que destruímos tudo o que Ele nos dá, entendeu?
- Entendi. Mas mãe, por que os homens destroem tudo?
-Porque o ser humano é malvado!
-Você é malvada, mãe?
-Não meu filho, eu não! Porque eu sei usar bem as coisas que Deus me deu.
-Ah, então foi Deus que te deu aquela pulseira nova...
- Não, não ... filho, ... Deus deu pra gente a vida! Ele deu você de presente pra mim e eu cuido direitinho de você, né?
- Né! ... Mas mãe eu não entendi uma coisa ainda.
- O que é meu filho?
- Por que é que é que o céu tem que ser azul?
Liquidificador ligado.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Libélula

"Descobrimos sempre qualquer coisa que nos dá a impressão de que existimos."
                         (Esperando Godot - Samuel Beckett)


Sobrancelhas espessas e arqueadas. Um nariz fino que parecia desviar-se para a direita. Lábios carnudos envoltos por um bigodinho tímido acobertavam dentes pequeninos e amarelados. Pelos aparentes espalhados pela face salpicavam-lhe as maçãs. Orelhas distantes da cabeça, que era sustentada por um pescoço longilíneo. Olhos negros, opacos, perdidos. Essa era a imagem que Hércules vislumbra todas as manhãs ao levantar-se, dirigir-se ao banheiro e prostrar-se na frente do espelho tentando enxergar o outro lado.
Sem tirar os olhos do próprio reflexo, procura pela saboneteira, abre a torneira e passeia com a pedra se sabão de uma mão à outra até que bolhas saem da espuma que começa a se formar. Devolve o sabão à sua origem e leva as mãos ao rosto esfregando-o até atingir um tom esbranquiçado. Busca na gaveta a navalha fria e afiada e começa a cortar os pelos que lhe cobrem a face. Joga água fria na cara e com a toalha áspera se enxuga.
Volta para o quarto e sem muito esforço veste-se com a troca de roupas que havia separado na noite anterior: a camisa bege com botõezinhos e a calça marinho presa por um cinto fino de fivela dourada. Os sapatos já estão à espera ao lado da cama.
Dirige-se à cozinha e come metade de uma maçã aguada. Caminha até a sala e mecanicamente estica o braço até a mesa de centro e mune-se de sua maleta marrom desbotada. Tranca todas as portas. Está pronto. Mais um dia de trabalho. Mais um dia sem fatos heróicos para Hércules.
Os dias parecem ter sido feitos sob medida para ele em uma máquina de produção em massa. Nenhuma peça fora do lugar, nenhum parafuso solto, nenhum minuto mal calculado. Hércules estava condenado à prisão perpétua enjaulado em sua própria vida. Nem mesmo os fios de cabelo branco na barba serviram para emperrar a esteira.
Prostrado mais uma vez diante do espelho, numa manhã igual a todas as manhãs, Hércules é forçado a desviar o olhar do espelho para uma libélula de asas verdes e velozes pousada no topo da cabeleira desgrenhada. Num impulso, elevou o braço, mas se conteve no meio do caminho, baixando-o novamente. A libélula cessou o voo e Hércules passou a contemplá-la, a analisar cada detalhe: o corpo fino, as asas frágeis e eficientes, as patas imóveis. Por alguns segundos, a imagem que Hércules via refletida no espelho não era a sua, mas a de um corpo estranho que carregava um espírito novo, e naquele momento ele viu refletido naquela libélula seus sonhos, suas necessidades, seus anseios, suas esperanças. Segundos depois, a libélula voltou a por a asas em funcionamento e partiu pela janela entreaberta. Hércules acompanhou o voo até perder o inseto de vista e quando o fez, voltou a olhar para o espelho. Mais um dia sem feitos heróicos para Hércules. Ele ainda ficou a encarar o espelho por mais alguns minutos. Naquele dia, Hércules não fez a barba.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Eu sou assim...

"Eu sou um pouco como os outros.
Mas também sou um pouco diferente.
Não, para ser honesto, sou completamente diferente.
Não, para ser honesto, sou como os outros.
Está bem, então sou como os outros."
                                                       (Inocência - Dea Loher)


Sou o resultado das minhas escolhas.
Dos caminhos que escolhi traçar.
Dos lugares que escolhi estar.
Das pessoas que escolhi ouvir.
Dos livros que escolhi ler.
Dos abraços que escolhi embalar.
Das bocas que escolhi beijar.
Dos conselhos que escolhi refugar.
Dos segredos que escolhi ocultar.
Dos amores que escolhi sufocar.
Das portas que escolhi fechar e das janelas que escolhi abrir.
Dos nãos que escolhi guardar.
Da vida que escolhi viver.
Agora não tem mais volta!
Eu escolhi ser assim.
Tive o livre arbítrio.
Golpe de sorte? Talvez.
Destino traçado? Não acredito.
Nosso destino é pintar a tela, encher o copo, acabar o livro, preencher os espaços.
Escolher quem queremos ser.
Trilho meu caminho!
Faço minhas escolhas!
Ah, novas escolhas, novos caminhos, novas pessoas, novas coisas novas ...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O menino artista

“ Menino vaga-lume, flor, menino estrela
A brisa mais forte veio te buscar”
                                                                   (Fernando Anitelli - O Teatro Mágico)

Ao meu grande amigo Fernando Gimenes.


Papel, caneta, envelope… Quem é que ainda escreve cartas nos dias de hoje? Eu escrevo! Não há nada como o cheiro do papel, a tinta escorrendo enquanto desenha palavras..., palavras que podem ser tocadas, como se pudessem ser tocadas também as experiências descritas ali.
           Eu adoro o Natal. Porque assim como eu, ainda existem pessoas que enviam cartões à moda antiga, que não se satisfazem em ver um Papai Noel saltando na tela do computador com um ensurdecedor HOHOHO e a irritante melodia natalina computadorizada que insiste em cantar todas as vezes que o cartão é visualizado. Prefiro mesmo esperar semanas checando a caixa do correio diariamente e sentir o coração pular quando o envelope é encontrado. Que alegria desfazer o lacre e tocar o papel dobrado em quatro e ao invés de renas dançantes, ver aquela letra gorducha tentando se mostrar na melhor forma ir emagrecendo e deitando, não contendo a emoção.
Não era apenas um cartão, era uma carta de Natal que recebia todos os anos do menino artista, menino que abriu as cortinas dos meus olhos para um mundo novo, um mundo onde eu posso ser o que eu quiser ser, um mundo colorido e sombrio às vezes, um mundo engraçado, às vezes choroso, enfim, um mundo de possibilidades que só a arte pode nos dar.
Eu acompanhei lá da platéia o menino artista se tornar o homem artista no palco e sempre o aplaudi de pé porque sempre enxergava além do personagem, além da cena, além do trabalho do ator, eu via o desabrochar daquele que todos os dias eu tinha visto sentado ao meu lado de uniforme azul marinho. Caio Fernando Abreu já havia me alertado que é difícil ficar adulto, mas são as pessoas que nos cercam que fazem esse processo menos doloroso e mais suportável. E as cartas de Natal com certeza funcionaram como remedinhos paliativos.
O menino artista segue seu destino brincando de estrela e quanto a mim, eu conto os dias até o próximo Natal.

O homem do rolo de tinta

“A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria que não significa nada.”
                                                                                                                                           (Shakespeare)


          O rolo de tinta vermelha percorre a faixa branca do muro marcando como um sorriso a fachada pálida. De cima do muro o homem corre o rolo pra lá e pra cá enquanto assovia tons desconexos. O boné esconde o rosto do sol do fim da manhã que já arde os braços expostos. A roupa velha com pingos de tinta branca e vermelha o acompanha na nova empreitada e os sapatos com cadarços de barbante envolvem os pés que com dificuldade se equilibram no alto do muro.
Um carro branco, daqueles grandões, estaciona rente à calçada cujo muro está sendo pintado. Um garoto de bochechas fartas e rosadas salta do veículo com pressa, agarra a mochila pesada, corre em direção ao portão e some no caminho coberto de telhas de plástico azuladas. O carro arranca com tanta força que até os pneus reclamam soltando um gritinho abafado, e vira na primeira esquina.
O homem continua a dança dos rolos de cima do muro. A tinta vermelha parece refletir e dar sinal aos carros, que ao ver a nova cor, brecam. Uma mulher aproveita a brecha e atravessa a rua com passos largos ameaçando começar uma corrida até chegar ao outro lado. E vai diminuindo o ritmo. Na mão esquerda uma sacola grande e preta, na direita só o peso dos anéis e pulseiras prateadas. Os cabelos ajuntados no topo da cabeça não se movimentam enquanto os olhos se dirigem para cima e avistam o homem do rolo de tinta que interrompe por um segundo o sorriso da nova fachada. Ao olhar para baixo, ele visualiza um ninho preto bem estruturado e preso por algo que brilhava e refletia o sol. O ninho se mexe e abaixo dele revela um par de olhos curiosos. O homem do rolo de tinta balbucia duas palavras que desencadeia numa interminável conversa enquanto a fachada se contenta com seu meio sorriso.
Um grito interrompe a conversa. Ele vem de uma boca da cor do sorriso da fachada. Uma amiga, também com uma sacola e os cabelos presos como um ninho, porém mais claros, se aproxima. As duas se encontram e põem-se a caminhar. Antes de tomar distância, a do ninho mais claro olha para cima e cumprimenta o homem do rolo de tinta, que responde. Ainda caminhando lhe faz recomendações, afinal com o peso da idade não se pode brincar, ainda mais em cima de um muro. Os três soltam uma risadinha acanhada que quase se assemelha ao meio sorriso da fachada. As amigas partem com suas sacolas e seus ninhos, e o homem do rolo recomeça a dança com a tinta.
- É a vida, não é? – filosofa uma das mulheres.
- Sim, fazer o que, né? – conclui a outra enquanto se distanciam.

Caixa de amigos

"Dentro de cada pessoa
Tem um cantinho escondido
Decorado de saudade"
Carlinhos Brown, Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Cézar Mendes

    A vida é realmente incrível, não é mesmo? Pessoas que fazem parte do seu dia-dia e que são indispensáveis para sua sobrevivência de repente como num flash somem feito fumaça e deixam apenas vestígios, migalhas, lembranças, cheiros, sensações. Às vezes eu detesto o tempo, na mesma proporção que o amo. Sim, amo porque só ele é o bálsamo que a gente precisa para curar feridas, esquecer, perdoar, esquecer e perdoar, enfim amenizar sentimentos que outrora foram arrebatadores. Mas eu odeio o tempo também, esse larápio de primeira que passa por nós feito um furacão e quando nos damos conta já nos levou embora a juventude, os anos de vida, os amores e os amigos.
    Tento viver o presente da melhor forma possível, mas guardo meu passado numa caixa a qual abro todas as noites nostálgicas quando preciso reviver algo. Queria assim também guardar meus melhores amigos, para que quando as noites apertassem meu peito eu pudesse aliviá-lo simplesmente abrindo minha caixa de amigos.
    Mas, isso ainda não foi inventado, né? Uma pena. Por isso tenho que conviver com essa sensação que ninguém é insubstituível e que as coisas vem e vão na velocidade da luz. Uns casam, outros separam, outros engravidam, outros morrem, outros vivem e assim gira a roda. Queria poder parar a roda pra dizer: "Ei, você... é você mesmo, você é importante pra mim... Você fez diferença na minha vida e você faz muita falta." Mas a roda não para e o meu melhor amigo ontem "casou, mudou e não convidou" como diria minha avózinha.
   O que serve de consolo é o que fica no coração, órgão que estudos de anatomia nenhum consegue explicar. Esse órgão pulsante que apesar de pequeno, guarda tudo dentro de si e nos dá vida. Acho que já sei, já encontrei a resposta. Meu coração é minha caixa. É, minha caixa de amigos e sempre quando eu sinto saudades eles estão aqui dentro, guardados feito relíquias. 
   Se você chegou até o final dessas linhas, obrigada por compartilhar comigo a minha angústia e ao mesmo tempo alívio. Angústia de perder os amigos e alívio por encontrá-los de volta no meu coração!

Qualquer coisa que não fique ilesa

Eu me rendo... Não é que eu esteja traindo meus cadernos, de maneira nenhuma, mas resolvi dar vida a eles.
Como tudo acontece na Internet, vou parir as idéias registradas nas folhas pautadas no mundo cibernético.
Inspirada por Arnaldo Antunes (O mestre), batizei a cria de QualQuer. Porque aqui escrevo qualquer coisa pra qualquer pessoa em qualquer lugar.
Qualquer coisa, qualquer coisa que não fique ilesa, qualquer coisa que não fixe.
... pra quem Quer ler...

QualquerArnaldo Antunes

Composição: Arnaldo Antunes / HélderGonçalves / Manuela Azevedo

Qualquer
Traço, linha, ponto de fuga
Um buraco de agulha ou de telha
Onde chova.

Qualquer pedra, passo, perna, braço
Parte de um pedaço que se mova.

Qualquer
Qualquer
Fresta, furo, vão de muro
Fenda, boca onde não se caiba.
Qualquer vento, nuvem, flor que se imagine além de onde o céu acaba
Qualquer carne, alcatre, quilo, aquilo sim e por que não?
Qualquer migalha, lasca, naco, grão molécula de pão

Qualquer
Qualquer dobra, nesga, rasgo, risco
Onde a prega, a ruga, o vinco da pele
Apareça

Qualquer
Lapso, abalo, curto-circuito
Qualquer susto que não se mereça
Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza

Qualquer coisa
Qualquer coisa que não fique ilesa
Qualquer coisa
Qualquer coisa que não fixe.