terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ela e a cidade

São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses de ilusão...
(Paisagem no 2 – Mário de Andrade)


Entrava sozinha no metrô Santa Cecília todas as manhãs e ali seguia para a longa jornada. De calças e jaqueta jeans, All Star branco e uma bolsa vintage nos ombros transpassada pelo corpo até a altura do quadril. Nas orelhas, brincos grandes no formato de rosas embaraçavam-se com fios de um fone que conectava uma espécie de aparelho feito para armazenar músicas e vídeos. Gostava de ouvir vários tipos de música, estilos bem diferentes e por isso sempre selecionava o modo randômico, para que fosse surpreendida a cada faixa. A curiosidade era tanta que na maioria das vezes nem conseguia esperar terminar uma canção e já avançava para a próxima, e para a próxima e para próxima, assim sucessivamente na vã tentativa de escutar as mil oitocentas e trinta e quatro músicas salvas ali naquele aparelhinho. Antes de apertar o botão ficava sempre aquela sensação gostosa de esperar o que o programa tinha selecionado para tocar, por exemplo, depois de “Vitrines” do Chico.
Com sua trilha sonora formada passava por algumas outras estações acompanhando com extrema atenção cada vez que uma voz anasalada anunciava o próximo destino. Não precisava muito para notar que não era natural dali, da grande metrópole. Estava ali há pouco tempo e ainda estranhava a euforia, o tumulto, a pressa de uma cidade grande. Com os fones de ouvido plugados tentava ser o mais discreta possível, mas não conseguia conter o nervosismo a cada vez que a porta do metrô se abria e um mar de gente inundava o pequeno compartimento metálico. Olhava sempre para baixo, vez ou outra erguia o olhar, mas ao encontrar outro par de olhos desviava os seus como se estivessem a fugir de alguma coisa. E fugiam. Fugiam de ser julgados, ou ainda mal interpretados, pois gente é gente em qualquer lugar, preferia manter-se distante de confusões, ainda mais ali, longe de casa, da família, com um bando de desconhecidos.
Quando deixava o metrô, sentia uma terrível dor nas costas e no pescoço porque era grande o esforço que fazia para segurar a bolsa e se segurar. Tinha lido muito sobre assaltos dentro dos meios de transporte públicos e temia um possível ataque a todo o momento que alguém, que ela julgava estranho demais, se aproximava. O jeito era se agarrar à bolsa o mais forte que podia para proteger seus pertences e se proteger também, como se pudesse esconder-se atrás de uma capanga de panos bordada. O mau jeito e a dor não aliviavam, somente trocavam de lado, porque depois do metrô vinha o ônibus e esse era o martírio de todos os dias. Ao entrar na condução, mal conseguia abrir a bolsa para pegar o cartão com o desconto para transitar nas linhas da Região Metropolitana. Era mais gente do que o ônibus realmente era capaz de suportar. Todos espremidos, raivosos, apressados e suando litros e mais litros. Isso era coisa que talvez a pobre interiorana não fosse entender nunca, o clima naquela cidade. Saia de casa às seis da manhã agasalhada e ainda batendo o queixo de frio debaixo de uma garoa lenta e espaçosa. Ao entrar nos meios de transporte transpirava horrores. Naquele dia, sentiu uma grande vontade de tirar aquela jaqueta, mas era impossibilitada pelos cotovelos, braços, cabeças e sacolas ao redor. Poderia também perder o equilíbrio e cair, já que seguia de pé agarrada a uma barra de metal no teto do ônibus. Fazia um calor imenso, no ar, um cheiro de suor que lembrava de longe o forte aroma de cebolas fritas. As janelas encontravam-se emperradas e ninguém se atrevia a abri-las. As paradas bruscas seguidas de constantes aceleradas e curvas sinuosas acompanhadas de um odor putrefato, da falta de espaço e da incapacidade de tirar a jaqueta foram lhe causando certa claustrofobia apavorante. Desde criança tivera problemas com veículos em movimento. Mesmo em curtas viagens era necessário o pai parar o carro para que ela pudesse sair e respirar ar puro. A se ver presa dentro do carro com as outras pessoas era como se estivesse amarrada e essa sensação lhe causava náuseas. Ali, dentro do ônibus começava a sentir os mesmos sintomas, enclausurada e com o estômago a dar voltas. Achou que ia perder os sentidos, ou mesmo por para fora o que lhe agitava por dentro. Abaixou a cabeça, respirou fundo e engoliu a saliva compulsivamente, como se ela fosse segurar o que estava prestes a sair. Alguns minutos depois já estava melhor. Fim da linha, era hora de descer.
Dali adiante era a melhor parte do percurso. Seguia a pé, olhando tudo, reparando tudo. Esquecia-se do teatro de se fazer parecer um habitante local. Fazia questão de ser turista para analisar, nos mínimos detalhes, pontes, pessoas, prédios, muros pintados, mais pessoas. Encantava-se com as inúmeras possibilidades que uma cidade como aquela podia oferecer aos moradores, uma diversidade como jamais havia visto antes. Caminhava uns quatro quarteirões aproximadamente e chegava ao seu destino. Cursava aulas de especialização no período da manhã. Chegava à escola e ali podia relaxar um pouco. Absorvia todo o conhecimento que podia até chegar a hora do almoço. Não compensava voltar para casa nesse horário, por isso ficava por ali até iniciar o turno da tarde que era quando cumpria uma carga horária optativa. Escolhera várias matérias que não pertenciam à sua carga horária, mas que lhe pareciam interessantes. E assim cumpria mais um dia no seu calendário minuciosamente calculado e planejado. Restava agora voltar para casa pelo mesmo trajeto da vinda acrescido do odor do dia inteiro e do medo da noite.
Enquanto caminhava pelo estacionamento, percebeu um carro vindo em sua direção. Apertou a bolsa com toda a força que lhe restava no fim do dia. O carro parou, o motorista abriu o vidro e ela logo o reconheceu, era um dos vários colegas de sala de uma das várias matérias optativas que ela cursava. Ofereceu-lhe carona e ela recusou educadamente e com certo receio. No mesmo instante lembrou-se da tortura do caminho de volta e resolveu aceitar a ajuda. Entrou no carro timidamente e pelo longo percurso até o apartamento conversaram sobre tudo, principalmente sobre arte, interesse de ambos. Pareciam se dar bem, ter interesses em comum. Riram juntos, filosofaram juntos, até cantaram juntos acompanhando as músicas do rádio do carro.
Ao estacionar em frente ao prédio dela, aquele silêncio do não saber o que fazer reinou por alguns poucos instantes. Obrigada e até logo foi o que ela conseguiu falar e como resposta obteve um “não vai me convidar para subir?”. Preferiu subir sozinha, achava melhor assim. Viver sozinha em uma cidade grande depois de anos na barra da saia da mãe já não era tarefa fácil. Um envolvimento amoroso agora só serviria para lhe tirar o foco dos estudos. Não que não poderia lhe ser útil ou agradável de alguma forma e essa idéia lhe martelou a cabeça a noite toda. Isso lhe era típico. Apaixonava-se rápido demais, mas nunca tinha coragem suficiente para concretizar seus sentimentos. Aliás, coragem não era seu forte mesmo.
E assim passavam-se os dias para mais uma das incontáveis criaturas que circundam a maior cidade do país. Cada uma com sua vida, sua história, seus desejos e medos. Essa era mais uma daquelas politicamente corretas, organizadas ao extremo, que ainda ficam melancólicas no Natal. Faladeira quando quer e carrancuda quando acorda. Tem sérias dificuldades em falar ao telefone, mas não vive sem ele. Impaciente, teimosa e ansiosa, características que já lhe renderam um buraco no estômago e alguns vidrinhos de florais no canto da penteadeira. Olha-se no espelho, penteia os cabelos e imagina quantos espelhos são olhados agora e quantos cabelos são penteados também agora somente neste prédio, neste bairro, nesta cidade, neste país, no mundo. Via o mundo grande e sentia-se pequena, como se o vento a pudesse carregar. Olhava a sua volta e sentia-se grande demais para viver em um cubículo daqueles. Ora grande, ora pequena, ora feliz, ora triste, ora com frio, ora com calor, ora turista, ora de casa, ora com medo, ora destemida. Eram essas sensações que lhe causavam a boa e velha São Paulo, a “paulicéia desvairada”, a terra da garoa, ou simplesmente lar.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Contagem Agressiva

“Haja hoje para tanto ontem.”
(Paulo Leminski)


Trinta e um de dezembro e é sempre a mesma coisa, promessas de mudanças, esperança e desejos de um ano bom acompanhados de muito Lambrusco, lentilhas, romãs e alguns pulinhos. Linhas telefônicas congestionadas aqui e lá do outro lado também. Sim, porque santos e orixás fazem hora extra nesse dia anotando pedidos e recebendo certos agrados descompromissados. É dia de festa também para as lojas especializadas em roupa íntima, especialmente feminina, já que sorte, paz, amor, paixão e uma boa grana dependem obviamente da cor da peça escondida debaixo do vestido. Videntes, pais e mães de santo, tarô, astrologia, jogo de búzios fazem previsões do que reserva os doze dias do famigerado Ano Novo.
            São todos muito bem intencionados, mas no fritar dos ovos, quer dizer, no estalar dos fogos o que resta depois de muita luz no céu é um cheiro insuportável de pólvora e uma fumaça que arde os olhos e espanta a multidão. Os dez segundos finais do ano velho carregam em cada milésimo traços de saudade, de perdão, de arrependimentos, de alegrias e tristezas e mais uma vontade incontrolável de recomeçar. Dez segundos. Dez segundos para uma vida nova. Dez segundos para o mágico poder de mudar, de se transformar, de se redescobrir fazer efeito. Dez segundos para reviver e repensar o ontem e assim começar a desenhar e construir o amanhã. Dez segundos.  
Dez...
Nem acredito que nesse ano eu mudo a aliança de dedo.
Nove...
Menino, sai do meio da rua! É perigoso!
Oito...
Derrubaram vinho tinto no carpete. Vai manchar. Calma, amanhã eu limpo. Amanhã eu limpo tudo.
Sete...
Seja feliz minha mãe, onde quer que esteja, seja muito feliz.
Seis...
Não posso esquecer-me de pular com o pé direito, é esse de cá, o de cá.
Cinco...
Alguém pegou a garrafa de vodca?
Quatro...
Um emprego, meu Deus, eu preciso muito conseguir um emprego logo.
Três...
Meia noite e quinze e eu vou embora. Hora dessas já era para estar na cama. Quem trabalha a semana inteira até no último dia do ano tem sono.
Dois...
Nem mais uma azeitona. Pronto, agora é boca fechada pro resto do ano.
Um...
Acabou, acabou... O que foi que eu fiz da minha vida mais um ano? O que é que eu estou fazendo? E pior, o que é que eu vou fazer?
Feliz Ano Novo!