segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Caminhada


"... uma caminhada cheia de contratempos até descobrir com alívio, lá no fim, que não há fim, a vida segue.”
                                              (Martha Medeiros)


Gosto de andar a pé
Ouço vozes, vejo caras
Fantasio histórias, crio pessoas
Me reinvento a cada passo
Chutando pedregulhos
Até esfolar o bico do pé
Em marcha lenta e passos largos
Continuo a caminhada
Sol de inverno ardendo os olhos
Chuva de verão molhando bobos
E nas costas uma mochila
Pesada, rota e farta
É preciso carregar
É preciso caminhar

Estão mudadas as calçadas
Fizeram novos buracos
E plantaram novas árvores
Não são os mesmos também os sonhos
Envelheceram sentados na mureta chapiscada
Paralisados olhando os carros
De braços cruzados
E chapéu preto na cabeça
Ficarão ali por mais um tempo
Enquanto há ainda pés para andar
Calçadas para furar
Mochilas para carregar
E história para contar

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O dia seguinte


“De todas as maneiras que há de amar nós já nos amamos (...)
Agora já passa da hora, tá lindo lá fora, larga minha mão.”
(De todas as maneiras – Chico Buarque)


O ar está parado
Pesado de um almíscar pernoitado
Anuviado de um cigarro mal apagado
A espuma já murchou
A balbúrdia já cessou
Os lençóis estampam a brancura que não têm
E o riscado bolero silencia
Não há de ser nada
São só fios amarelos indiscretos
Que descaram e revelam
Espelhos tortos, almas torpes
Bobeiras, besteiras, bobagens
Lampejos de lucidez
Clareiam as memórias
Embebidas em gim e tônica
Voltando a ser o que foram
Ainda sem saber o que são

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Buraco

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
(O Buraco do Espelho – Arnaldo Antunes e Edgar Scandurra)



Canetas, clipes, pilhas palito, cacos de vidro, a cabeça de um anjo sem asas, retratos pisados, CDs quebrados, cortinas rasgadas, almofadas espalhadas. Ligar para o Jorge amanhã com urgência. IPVA 2011, Gol Preto, R$1.120,00. Guia da TV a cabo mês de agosto. A realizar-se no dia quinze de dezembro de 2010 às dezoito horas na Igreja Sagrado Coração. Chaves, chaveiros, lembrancinhas. Fui para Aparecida e lembrei-me de você. Torre Eiffel, Mickey Mouse, areias de Maceió. Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Controle remoto, fios, fones de ouvido, mais fios. Um único Sonho de Valsa quebrado em meio a cacos de cristal.
            Iogurte de morango no chão, latas de cerveja abertas, alface, temperos, panelas espalhados pelo chão. Comprar produtos de limpeza, sabonetes, arroz, feijão, café, açougue e varejão. Copos sujos na pia e bitucas de cigarro sobre a mesa. Toalhas de renda desfiadas. Gavetas retiradas, talheres remexidos, geladeira aberta. Inglês segundas e quartas e violão nas terças e quintas. Imã de caranguejo faltando uma perna.
            Roupas, muitas roupas sobre a cama e o chão também. Lingerie, pijama, quimono, terno, vestido. Vidro de perfume estilhaçado envolto por uma poça. Batom, blush, sombra, todas as cores pelo espelho trincado. Porta-jóias com bailarina solitária. Secador de cabelos, gel de barbear, gilete e chinelos. Sapatos desencaixotados.
            Sorriso de pasta de dente no Blindex do banheiro. Pílulas, gotas, bolinhas, frascos e emplastos. Papel higiênico desenrolado. Toalhas de banho sujas e torneira aberta. Fio dental caído em meio às fezes no bidê. Uma nuvem de algodão e cotonetes.
            Livros, enciclopédia e revistas desfolhados. Edital do concurso da Promotoria do Estado. Apostila, lápis, grafite, grampos e papel. Papel por toda parte. Miniaturas reduzidas a pó e manuais velhos de eletrônicos. Eu te amo, Feliz Dia dos Namorados. Lembrança da Primeira Eucaristia. Certidões, passaporte, recibos e diplomas.
Invadido, inválido, com mãos, pés e coração atados. Seu corpo estava ali escancarado como se todos os órgãos tivessem sido arrancados e estivessem ali expostos para uma platéia masoquista que fazia gosto em ver derramar cada gota do seu sangue. Tamanho era seu nojo que sentiu uma espuma sair do seu estômago rumo à boca. Quis vomitar, mas nem para isso tinha forças. Havia sido violentado, dilacerado e agonizava sob os restos mortais de uma vida agora apunhalada e espezinhada. Era como se o mundo conhecesse os seus maiores segredos e manias, e conhecendo-os, risse da sua cara com deboche. Sentindo-se sujo, deixou-se escorregar no vão da porta. Fechou os olhos e os abriu várias vezes na tentativa de ser somente uma ilusão. Deixou a cabeça cair e ali ficou durante algum tempo até ouvir o barulho das sirenes. Prejuízo financeiro incalculável e um rombo desmedido na alma. Um buraco que TVs de plasma, laptops e milhares de oncinhas não seriam capazes de tapar. Tinha no peito uma fechadura como aquelas utilizadas por primos adolescentes para observar intimidades e gozar de alegria com tamanha astúcia. Um buraco negro aberto à marretadas com direito à visitação e cochichos dos vizinhos. Uma alma esburacada. Era isso que lhe restava.  

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

11 versos tristes

“Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?”
(Acordar, viver - Carlos Drummond de Andrade)

Há ainda muita terra pra comer
Há muito vidro pra quebrar
Há muito doce pra mexer
Não se pode mais piscar
Nem fraquejar nem gaguejar
Estão todos te olhando
A carregar o alfabeto inteiro no peito
Pendurando no cabide do fracasso
O terno gasto da culpa
De ter vendido a própria mãe
Por um pedaço da maçã

domingo, 21 de novembro de 2010

C – A – L – M – A

“De onde vem a calma daquele cara?
Ele não sabe ser melhor, viu?”
(De onde vem a calma – Los Hermanos)


Calma
Só me sabem pedir calma
Sabe o que faço com a calma?
Arranco da alma
Que nunca se cala
Enfio na mala
E jogo na lama
Já que ninguém me ama
Choro na cama
Arrume você mesmo um DNA de barata!

Fogos de artifício

“É tudo novo de novo, vamos nos jogar onde já caímos.”
(Tudo novo de novo – Paulinho Moska)

O ano já não era mais o mesmo
O velho vira novo num estouro
Lampejos decoram o breu
Corpos cinzentos e cansados agora são incandescentes
Embebidos em faíscas e chispas
Como se até o virar de mais um tempo
Ainda pudessem continuar acessos
Nem que for por apenas fria e opaca,
Mas única centelha

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Chorando morangos

"Eu to chorando pelo que podia ter sido e não foi.”
                                 (minissérie Queridos Amigos)

O sal da lágrima ardia
Mais do que já estava ardendo
O ritmo batia acelerado
Quase parando
Apertado pra esconder a dor
De mil garfos espetando a carne

O gosto do choro amargava a boca
Engolido à força goela abaixo
Enchia o papo, o peito, a pele
Sensação de secura
Nos cabelos e na alma
Soltos pelo vento, presa pelos homens

O corpo perdeu a obediência
Inflava e murchava numa vida de Alice
Com miolos encharcados
Pingando vodka com morangos
Vermelhos feito sangue
Sangue salgado de lágrimas.

Instantânea

Fome de miojo
Amizade em SMS
Um expresso fecha a conta:
Emoções em Polaroid.

Baú

“As laranjas não existem porque são de supositório.”
                                                                     (Chaves)




A: He é para menino e She é para menina. Como o He-man e a She-ra. Lembram?
B: Quem são esses, teacher?
A: Os heróis do castelo de Grayskull.
B: Eu assisto Dragon Boosters.
C: Eu adoro Dragon Boostres.
D: Eu não gosto de Dragon Boosters.
A: O que é Dragon Boosters?

...

O que tinha acontecido com o homem da espada e a princesa do poder? Acho que cochilei em frente à televisão e dia desses, quando acordei, o que restava eram as lembranças de bichinhos azuis com gorros brancos e ursinhos com desenhos na barriga.
Muita coisa muda, outras permanecem as mesmas como o dono da Porta da Esperança dançando Hot Hot Hot com o microfone preso à gravata. Tem certas outras coisas que simplesmente desaparecem, enquanto outras sobrevivem ao bolor dentro de um barril numa vila mexicana ou segurando uma marreta biônica e zás, zás, zás. Fofões, Bozos e Mafaldas ameaçam ressurgir em cópias fajutas, sem muito sucesso.
O tempo perguntou pro tempo quanto tempo o tempo tem. Acho que o tempo suficiente para acontecer e deixar saudade. Afinal de contas, o que seria das pessoas com um buraco no peito sem sentir melancolia e a dorzinha de uma saudade em dia de chuva? Saudade de viver Anos Incríveis nos corredores de uma escola americana ou saudade da vontade de ter um gravador que levava um menino pro Mundo da Lua. Saudade de uma rua cheia de pombos ou de um mar onde dois peixes tagarelavam e assistiam a desenhos animados. Saudades de três tartaruginhas valentes ou ainda de gatos corajosos do planeta de Thundera. Ou quem sabe, saudade do espírito de equipe de uma turma liderada por um alce ou de um atrapalhado inspetor e toda sua bugiganga.
É só fechar os olhos e ver balões mágicos no céu, no mesmo céu onde voava o homem da capa vermelha ou ainda monstros japoneses e suas piruetas em meio a letras e símbolos esquisitos. As garotas de Charlie também passeavam por ali, bem próximo de onde uma garota vestida de rosa shocking encontrava o seu amor. Os sábados eram dias de escola para uma turma de cinco adolescentes estranhos e às terças, pirataria já não era mais crime na TV. A escola também era lugar de encontro para uma Galera do Barulho sempre salvos pelo sino.
Alô Teresinha, isso me cheira a naftalina ou será glacê de bolo que Três Patetas esfregavam na cara um do outro? Na verdade, tem cheiro de crime no ar, crime militar de um esquadrão de primeira. Pode também ser de fogo vindo de um reino encantado de cavalos, princesas e rainhas. Rainha havia também longe dali, uma que sonhava em ser rainha da dança, em ritmo de embalo, que por vezes também foi quente num resort ali por perto. Reinos encantados existiram sempre, e eram adorados especialmente se além de encantado era medieval e mitológico povoado por ursos mais inteligentes que a maioria por aí. Outro mundo também existia além da montanha russa e era habitado por dragões e visitado por jovens do mundo real.
E senta que lá vem história. História de uma fada criança, de um homem que conversa com uma cobra, de um homem mascarado que achava que resolvia mistérios, de uma esfinge sabichona, de um palhaço com spray na mão, de um pinguim tocador de piano, de professores nada convencionais. Tudo isso assistido por uma família. Famílias também sempre fizeram parte desse mundo. São famílias do passado, do presente e do futuro em aventuras semanais.
Ursos, palhaços, dragões, reis, princesas, famílias, criaturas, gente... Tudo guardado num saco mofado que ao ser aberto libera lembranças de uma época. Uma vez ou outra abro o saco. Vez ou outra só.

domingo, 14 de novembro de 2010

Arco-íris de anil

“Quem souber de alguma coisa venha logo me avisar
Sei que há um céu sobre essa chuva e um grito parado no ar.”
(Um grito parado no ar – Toquinho e Gianfrancesco Guarnieri)



As gotas de chuva escorregavam pela vidraça do apartamento. Batiam contra o vidro e deslizavam janela abaixo deixando seus rastros. Eram finos esguichos d’água ainda tímidos. Fiquei por um momento a contar as gotas quando me distrai com os raios do sol, igualmente tímidos, numa batalha travada com os pingos. Nesse cabo de guerra formado, quanto mais força colocavam, mais a corda se esticava. Uma corda colorida e arqueada de fora a fora.  
Dizem que o arco-íris tem sete cores. Nunca consegui enxergar mais do que seis. Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e violeta. Que diabo de cor é anil? Azul e anil são a mesma cor. Para falar a verdade, se completam. Existe o azul marinho, o azul petróleo, o azul anil. E nem por isso deixam de ser azul. Sentada ao pé da janela, ainda olhando a corda colorida, eu me imaginei anil. Naquele momento eu não era nem azul nem deixava de ser. Eu era simplesmente anil. Como definir o anil? Um azul que se cansou de ser azul e resolveu se rebelar e trocar de nome. Era azul na sua essência, mas carregava uma tonalidade nova que azul nenhum jamais tivera.
Dizem que o olho humano, algumas vezes, não pode captar o anil. Ele passa despercebido em meio às outras cores. Não é nem primário, nem secundário, nem adiciona, nem subtrai. Tem gente que acha que anil nem é cor, nem mesmo na caixinha de trinta e seis. Talvez não seja mesmo. Talvez o anil seja uma mera invenção de Newton para completar o seu espectro perfeito. Sete dias, sete notas, sete cores. Que obsessão!
Obcecada estava eu a contar pingos e cores no céu. Sendo anil e querendo ser ora azul, ora violeta. A velha já me tinha escalado para fazer parte do arco-da-chuva ou seria do sol? Só sei que era um arco. Um arco-da-aliança no qual as cores coexistiam para alegrar o casamento da viúva, ou será do espanhol? Pensando bem, acho que o anil não me cai tão mal assim. Ser só azul é muito chato e violeta o tempo todo me daria uma canseira.
           A chuva puxou mais forte e venceu essa batalha. O sol envergonhado se escondeu por algum tempo. A corda se afrouxou aos poucos e sumiu em meio às gotas gordas que se uniam e agora batiam com muita força na minha janela. Cansada de intrometer em briga alheia, fechei a cortina e liguei a TV. Estava feliz por ser anil. Somente anil.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Boia Clara, boia

“Brilha a luz duma janela
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.”
(A noite é muito escura – Alberto Caeiro)

Clara boia
Boiar
O ar
Respirar

Clara boia
Clarear
O ar
Iluminar

Queria eu a vida de claraboia!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Efeito sonoro

“O que será que me dá, que me queima por dentro será que me dá, que me perturba o sono será que me dá?”
                        (O que será (À flor da pele) – Chico Buarque)


Mais um carro e uma moto e outro carro
Quem ligou o ventilador?
Esse telefone tocando de novo
Boa noite, está no ar o Jornal Nacional
Abaixa o volume!
Fecha porta, abre porta
Hey Jude, don’t let me down
Desliga logo esse chuveiro

SILÊNCIO

Passa carro, passa moto
Deixa rodar
Deixa gritar
Boa noite pra você também Bonner
Volume, cadê o volume?
Bate porta, bate
Que música é essa?
Quer banhar, deixa banhar

SILÊNCIO

Já não posso mais ouvir
Até o vento está parado
Preciso preencher meu tempo
Pulso, estou perdendo o pulso
Já não sou tão mais igual
Qualquer onda ou vibração
Que possa completar todo esse vácuo
Livrai-me de pensar

SILÊNCIO

Onde foi toda essa gente?
Perguntas, perguntas, perguntas
Não quero mais responder
Pára de pensar, não quero mais pensar
Porque tá doendo tanto?
Vou gritar, tenho que gritar
Meus tímpanos já não mais aguentam
Silêncio ensurdecedor.

SILÊNCIO

Coração de menininha


“Pode parecer promessa, mas eu sinto que você é a pessoa mais parecida comigo que eu conheço, só que do lado do avesso.”
                                                     (Avesso – Ceumar)

Já disseram que as mães não deveriam morrer nunca... acho que as irmãs também não... deveriam ser eternas... Pra você Nanina:


É um gato! E a procissão ia descendo rua abaixo. Agachada, com o vestidinho branco, olha por debaixo do portão e confirma: é um gato mãe! Fica quieta menina o andor está passando. Amém, amém, amém. Não grita menina, já está chegando. E assim foi até chegar à porta da igreja.
Cachinhos como fios de sol enrolados um a um, olhinhos que carregavam o mar inteiro dentro deles e a pele alva como neve com salpicos nas bochechas. Assim era ela, a menina. Inquieta, risonha, emburrada, franzia a testa, e fazia bico e gargalhava também, mostrando os dentinhos. Vivia com os pés e mãos enlameados em meio às plantas e animais. Queria ter o zoológico em casa, mas o máximo que conseguiu foi um peixinho num saco plástico ganhado na turma de natação em festa de comemoração de fim de ano. Trinta e cinco dias foi o que durou. Não por falta de cuidado, mas por ser da natureza deles. Peixes de saco plástico não nasceram para viver muito. Anos mais tarde ganhou um galinho Galizé. Esse até que durou bem. Com vida, foi-se embora para a fazenda. A cantoria ao despertar não agradou a vizinhança. Pobre Galizé.
Chega de animais, pelo menos por enquanto. A menina então se conformou em brincar com as criaturinhas todos os sábados e feriados quando ia para a fazenda. E se esgotava correndo, pulando, rolando, subindo e descendo em árvores, caindo e chorando e correndo de novo que só mesmo o tanque com bucha e sabão de coco dava conta de desencardir dedos e unhas. Banho tomado era como se a pilha fosse retirada, chega a hora de dormir. Dorme tranquila menina e que os anjos lhe protejam!
Muitas noites foram dormidas e muitos dias foram brincados. Os cachinhos se alongaram Os olhinhos ainda eram feito o mar, mar que ora era maré cheia, ora baixa-mar. A alvura era a mesma, assim como eram os mesmos, nas bochechas, os salpicos que agora também lhe pintavam o nariz discretamente. Nunca deixou de amar os animais. Convivia agora em meio a papagaios e calopsitas, a vizinhança não reclama mais.  A menina continuava a brincar, brincava de ser grande, mas grande mesmo era seu coração. Grande e confuso. Gostava muito dos bichos, mas resolveu mesmo foi cuidar de gente. Cuidava tanto de todas as gentes que às vezes esquecia-se dela mesma. Era menina, era moça, parecia mãe. Tinha um tempero especial, azedinho-doce. Só não podia errar na dose.
Depois de um dia exaustivo brincando com a vida, a menina dorme. Dorme como quando a vida era o pomar da fazenda velha. Dorme tranqüila menina e que os anjos lhe protejam!

domingo, 7 de novembro de 2010

Apenas o fim

“Eu não entendo essa mania que as pessoas têm de querer saber o que vai acontecer. Não sei, pra mim, viver é jogar Detetive. Você sabe que alguém vai morrer no final. Agora, se vai ser com uma faca no hall ou com um castiçal na sala de estar... Eu acho que é legal você ir descobrindo aos poucos, jogada a jogada, explorando todo o tabuleiro.”
(Antônio, personagem de Gregório Duvivier em Apenas o fim, filme de Matheus Souza)

 

Não sei por que demorei tanto, mas só ontem assisti ao filme “Apenas o fim”. Dois jovens universitários terminando um relacionamento com apenas uma hora para conversarem e se despedirem para talvez nunca mais se verem. Um filme de diálogos. Tive uma sensação de déjà vu ao ler a sinopse. Era muito “Antes do amanhecer” e “Antes do pôr-do-sol”pro meu gosto. Não que eu não tenha gostado das duas obras de Richard Linklater, pelo contrário, mas não me parecia à primeira vista uma idéia muito original. Isso porque a proposta de um filme de personagens e não de ações, no qual os diálogos se personificam e ganham papel de protagonista tem que ser muito bem feita para dar certo. Os diálogos têm que ser muito bons.
Já nas primeiras cenas me surpreendi. Um texto leve com diálogos despretensiosos e simples. Deixei-me levar por aquelas palavras, por aquela história, por aquelas pessoas. Era sim fortemente influenciado pelos filmes estrelados por Ethan Hawke e Julie Delpy, mas tinha uma dinâmica e linguagem próprias, jamais exploradas em outros filmes. Algo tão próximo do real, tão natural só poderia ter partido de um jovem também universitário e idealista. Matheus Souza consegue tirar uma foto de toda uma geração inquieta, perdida e árida por respostas. Em uma entrevista, o jovem cineasta disse que a geração a qual ele retrata e da qual também faz parte é definida por seus gostos. Definimos-nos por nossas comunidades no Orkut, disse Matheus. Elas nada mais são do que uma lista de gostos e preferências. O casal do filme busca se conhecer, busca a intimidade através de diálogos ingênuos e ao mesmo tempo reveladores sobre o que eles gostam ou não gostam, desde uma simples fruta ou um personagem da TV, até questões mais intensas como posição política e crença religiosa, traçando assim personalidades e perfis. “Eu sou aquela vontade que dá de repente de tomar Fanta uva”. Essa frase resume a obra. Através dela fica clara a intenção do filme de ser discreto, mas que incomoda, que mexe, que faz pensar, que faz buscar. Nesse momento tive que pausar o filme, anotar a frase e pensar: e eu, o que eu sou? São cenas que revelam momentos de epifania dos personagens e que fazem dar um clic na cabeça do espectador que se reconhece naquela situação e se emociona, e ri junto e chora junto. Isso é possível não por apelos sentimentais cafonas e hollywoodianos, mas simplesmente por ser verdade. Eu pude ser os personagens em alguns momentos e em outros eu sabia que os conhecia. Em outros ainda eu apenas tive vontade de conhecê-los.
Confesso que chorei na última cena. Compulsivamente. A ponto de não ter coragem de colocar outro filme com medo de que ele apagasse as sensações deixadas pelo primeiro. Chorei não por causa do fim do romance, que já estava programado desde o começo, mas por tudo o que o casal tinha vivido. A partir desse momento eu descobri porque as pessoas choram quando alguma coisa acaba. Não é pelo fim porque o fim muitas vezes é só o começo, mas pela saudade de tudo o que foi. A vida não é nada se não uma coleção de emoções, de sentimentos, de cores, de sons, de experiências. Deve ser por isso que eu choro todo final de ano, não porque o ano acabou, acabar é conseqüência e eu já sei que tem um novinho em folha chegando. Eu choro pela lembrança de todos os momentos bem vividos, ou não, durante o ano que se esvai.
As imagens dos dois personagens se afastando eram misturadas com imagens de momentos compartilhados durante o período de namoro. Simplesmente poético, comovente. Depois do desespero de tocar em feridas e pôr em erupção um vulcão inativo, pude sorrir. Sorri porque já não me sentia sozinha. Não mais. Estou de mãos dadas com uma geração que não se contenta com o linear, com o cotidiano, com a falta de respostas. Estou de mãos dadas com uma geração que sente o bicho comichão dentro do peito e que não toma um remedinho para mascarar a dor. Estou de mãos dadas com uma geração que sai da zona de conforto nem que por apenas alguns minutos e se libertam das correntes do comodismo.
Definitivamente um filme para guardar nas caixas da memória para poder abri-las sempre que o monstro do fim, do acabou, do terminou sair de dentro do armário. O que vale mesmo é explorar todo o tabuleiro, afinal de contas, é apenas o fim.

sábado, 6 de novembro de 2010

Amigas de outras danças

“E nessa ciranda o mundo inteiro é meu, é seu, é meu, é seu...”
(Ciranda – Palavra Cantada)

À minha amiga-irmã de todas as danças, Éllen:

 
Imagem de WLADMIR CORREIA (Tatá)

Cirandeiro mandou abrir a roda e rodar
E rodando, rodando vi cores, eu vi gente
E o ganzá ia tocando e toda a gente ia girando
Trocou os pares quando vi um rosto novo
Dois corações pulando ao som da caixa se encontraram
E nunca mais pararam de dançar

Improvisando refrões às gargalhadas
Dançaram aos pulinhos
Tapeando as tristezas e repartindo as alegrias
Não importando em importar
Se alguém lhes esbarravam
Ou se os passos ainda erravam

Pisando forte na marcação da zabumba
Com os pés descalços seguiam seu caminho
Os braços entrelaçados imitavam as ondas do mar
E o destino iam chamando
Ele veio e as buscou: irmã preta e irmã branca
Mesmo longe dessa dança
Ainda pulsam no compasso da ciranda.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Espera quatro por quatro


“Ficar esperando uma noite e perder a esperança, isso faz a gente envelhecer.”
(Inocência – Dea Loher)




Vejo tudo azul. Tocas, máscaras, jalecos. Em volta, azulejos brancos. É frio aqui. Por que tantas ferramentas? Pontudas, redondas, grandes e pequenas na bandeja. Outra contração. Um, dois, um dois, respira, respira. Puxa pelo nariz e solta pela boca. Já está passando. Por que demora tanto? Nove meses, nove meses se passaram. Como será que ele é? Ou será ela? O nariz do pai e os olhos da mãe. Ou será o contrário? Deus não permita! De novo. Será que é agora? Por que o médico ainda não chegou? Preciso de anestesia! Respira, respira. Vinte minutos. Quanto tempo é vinte minutos? Respira, respira. Quanto tempo já passou? Finalmente o médico! Mais alguns instantes. Quanto vale um instante? Luvas nas mãos. Esquece esse celular. É agora! Estou sentindo. Pra que tanta enfermeira? Empurra, empurra. Acho que não tenho forças. Empurra, empurra. Alguém tem que me ajudar. A cabeça. Já tiraram a cabeça. Só mais um pouco. Não consigo respirar. Os ombros. Não vou conseguir. Meu filho. É um menino!

***

- Acho que deve ter esquecido!
- Não, não. Alguma coisa deve de ter acontecido. Logo logo ele tá aí.
- Você mora aqui?
- Não, moro aqui perto. Eu só abro e fecho o portão.
- Você já vai embora então?
- Ainda não. Eu espero.
- Tá bom.
- Põe aqui a sua mochila. Deve de tá pesada, num tá?
- Tá. Mas ele já vai chegar.
- Você pode sentar aqui se quiser. Não tem lição de casa pra fazer?
- Tenho, mas meu pai me ajuda depois.
- Vai estragar seu tênis chutando essas pedras aí.
- Que árvore é essa?
- Ela chama Quaresmeira.
- Qua-res-meira?
- É. Acho que é porque as flor só brota na Quaresma.
- Tá demorando.
- Não, a Quaresma já passou.
- Meu pai.
- Ah... Esse chão aí tá sujo. Acho melhor sentar aí não.
- Hoje é sexta mesmo!
- Você mora longe?
- Moro.
- Entra pra dentro menino. Essa rua é perigosa.
- Tô vendo se vejo o carro dele.
- Quer uma bala?
- Meu pai não deixa antes da janta.
- Tá com fome?
- Tô.
- Guenta só mais um minutinho.
- Acho que é ele.
- É ele mesmo.
- Paaai....

***

            Saiu do banho e perfumou-se toda. Vestiu-se, arrumou o cabelo e estendeu a toalha molhada no Box do banheiro. Seguiu para a cozinha. Lavou, picou, refogou. Na sala de jantar dois pratos, talheres, dois copos, guardanapos. Um arranjo de rosas brancas com trigo seco no centro da mesa. Desligou o fogão. Espremeu os limões, colocou água e açúcar. Levou a jarra à mesa. Ajeitou mais uma vez o arranjo.
Olhou para o relógio e sentou-se no sofá. Trocou alguns canais. Sentada com os pés no sofá e segurando uma almofada caiu no sono. Acordou agitada com barulhos de buzinas que vinham da sacada. Levantou-se do sofá e foi conferir o movimento da rua. Muitos carros circulavam. Era hora de voltar para casa. Sentou-se na espreguiçadeira e pôs a ler o livro que havia deixado ali na tarde anterior. Encontrou o marcador e continuou a leitura interrompida. Releu alguns parágrafos para retomar a sequência e mergulhou naquela história até cair no sono novamente. Despertou, dessa vez sem sobressaltos, e voltou o olhar para a janela do prédio da frente. Assistiu a um casal de velhinhos tomando a sopa. No apartamento do lado, um casal apaixonado trocava torpes carícias na sacada. Envergonhada por invadir a vida alheia retornou o olhar para o livro e o repousou no mesmo lugar onde estava antes.
Caminhou até a cozinha e ligou o fogão mais uma vez. Com a comida requentada, levou as panelas à mesa do jantar. Abriu o congelador e retirou a forminha de gelos. Desinformou-os e os colocou no suco que estava sobre a mesa. Ouviu o barulho na porta que se abriu. Já era tempo. Ele chegou, podemos jantar.

***
Meu olhar ao longe espera
Incessante espera

Umas são doces, outras são ternas
Esperas possíveis por uma recompensa.
A minha não é desse tipo
É docemente intangível
É ternamente invisível

Atingir as estrelas?
Percorrer o infinito?
Ultrapassar o horizonte?
Não, eu só espero respostas...

Deixa ventar


“tudo vem do ven-tudo vem
do vento vem tu-do vento vem
do vento vem tudo
tudo bem”
             (Do Vento – Arnaldo Antunes)


Me agarro na árvore de tronco velho
Quando o vento passa
E arrasta meu corpo

Me escoro na rocha firma
Quando o vento passa
E varre minha aura

Me debruço no solo áspero
Quando o vento passa
E assopra minha visão

O passado e o presente
O forte e o frágil
O árido e o suave
E o vento não me rouba mais.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Anedota Carnavalesca

“Todo carnaval tem seu fim, e é o fim, o fim.
Deixa eu brincar de ser feliz.
Deixa eu pintar o meu nariz.”
(Todo carnaval tem seu fim – Marcelo Camelo, Los Hemanos)


Era Carnaval de 1950. As ruas enfeitadas, as calçadas coloridas de confetes e serpentinas. Grupinhos de foliões desciam a avenida principal acenando, cantando e dançando sobre os paralelepípedos. Os rapazes de um lado com seus smokings alugados e as moças de outro exibindo seus vestidos de seda e de cetim feitos exclusivamente para esse dia. As máscaras eram suntuosas, brilhantes. Nas cabeças, arranjos de plumas e flores. Os amigos se encontravam na praça central e juntos seguiam para o salão municipal onde todos os anos acontecia o baile de carnaval.
            De frente à praça havia um sobrado velho com paredes descascadas, janelas antigas e grandes que lembravam as casas do período colonial. Eram janelas de um marrom enferrujado e tinham os vidros opacos. Do alto do sobrado, escondida nas cortinas brancas de renda, Lucila observava o movimento dos mascarados e se encantava com o fulgor, a agitação e a beleza da juventude. As moças andavam sempre juntas, de braços dados, aos cochichos e risinhos. Ao cruzar o olhar com um rapaz, viam os rostos ruborizarem e as risadinhas aumentarem. Lá de cima, também Lucila sentia uma ardor nas faces, que fazia com que ela se escondesse ainda mais em volta das cortinas empoeiradas. As pessoas iam adentrando o salão, pois era dado início o baile de gala. Lucila ia percebendo a rua esvaziar-se até que restavam ali aqueles que não tinham convite e que esperavam, até o último segundo, o milagre de serem convidados a entrar.
            No auge de seus 18 anos, a moça do sobrado nunca havia ido a um baile de carnaval. Antes porque era moça nova e aquilo não era lugar para criança. Depois de moça feita, a morte do pai fizera dela uma enfermeira da mãe que adoecera de saudade. Lucila repartia seu tempo entre o curso Normal, o trabalho na creche e os cuidados com a mãe. Todo carnaval é assim: Lucila dá o jantar à mãe, a coloca na cama e corre até a janela onde fica até pegar no sono, de pé, encostada no parapeito. Ali, ouve as músicas e chega a dançar envolta na cortina, imaginando ser seu belo vestido de gala. Era a moça mais bela do salão, flutuava ao caminhar exalando um perfume cítrico e chamava para si os olhares de todos os rapazes que sonhavam com uma dança. Ao final do baile era coroada a rainha, e em meio aos aplausos, ouvia os comentários de quão bonita era a moça com a coroa do carnaval.
            A campainha toca e desperta Lucila de sonhar. Ela se assusta e olha para baixo. À porta está um rapaz de smoking com uma máscara nas mãos. Lucila abre a janela e pergunta o que deseja o jovem. Ele grita algumas palavras, mas não é compreendido. A moça desce até ele que lhe conta uma história. Ele tinha vindo ao baile e esquecido o convite. Fez todo o percurso de volta e quando, com o convite em mãos tentou entrar, foi impedido por que já passava das onze. Cansado, humilhado e seco de sede, queria apenas um copo d’água antes de se por de volta à sua casa. Lucila lhe deu a água e enquanto ele se saciava ela o observava, cabelos negros e ondulados, olhos grandes, lábios corados. Era muito apresentável. Ao devolver o copo à Lucila, os dedos dos jovens se tocaram e eles sentiram os rostos esquentarem. O rapaz sorriu, agradeceu e partiu. Lucila ia fechar a porta quando olhou para o chão e viu a máscara que o rapaz segurava. Agachou-se e recolheu o enfeite. Pensou em o procurar para devolver, mas lhe faltou coragem. Ela guardou a máscara na esperança do rapaz voltar para buscá-la. E nos bailes de carnaval, enrolada na mesma cortina, Lucila usava a máscara e sonhava o mesmo sonho.
            Do alto do sobrado da praça, sessenta anos depois, Lucila ainda assiste ao carnaval, agora pela TV. Em suas mãos uma máscara velha, descosturada, sem brilho. Em seu coração marcas de carnavais passados.

Historieta

“Será que é possível sentir nostalgia de um lugar que eu nunca conheci?”
(Che Guevara no filme Diários de Motocicleta)  


Ontem mesmo inventei uma história
Onde os relógios não têm ponteiros
Onde os dias brincam com os meses
Onde o sol fez as pazes com a lua
Onde o meu, o seu e o deles não apostam mais corrida

E choveu papeizinhos picados
Coloridos, e recortados por uma tesoura grande
Caídos de uma nuvem de lençóis

Ontem mesmo inventei uma história
Onde os personagens riam e choravam e dançavam
Onde os pés pisavam lentos
Onde o corpo dançava com a mente a mesma canção
Onde ser era mais que existir

E guardaram o escuro numa caixa
Trancafiada a muitas chaves
Escondida no armário

Ontem mesmo inventei uma história.