sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Presente para um estranho


“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido.”  (Clarice Lispector)


disseram não me entender envolta por metáforas e jogos de palavras e não me  existindo em versão comentada e panfletos explicativos resolvi me desnudar de pontos finais vírgulas letras maiúsculas parágrafos e rimas para que finalmente vejam que tudo isso não é nada mais que um grito por socorro ou apenas uma forma de expressar o que durante noites e noites me povoam a cabeça e me tiram o sono e ainda me fazem acreditar que sou sensível demais para um mundo casca grossa que imprudentemente me esfola diariamente mas que também me presenteia de forma inesperada com mentes evoluídas um tanto quanto egocêntricas e complicadas feitas justamente para me questionar e me descobrir mesmo que seja num terço de vida já que os outros dois terços ficam por conta da imaginação e criatividade de cada um até porque me entender como diria Clarice é uma mera questão de intencionalidade sensibilidade psicologia comportamental e frações matemáticas

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Paredes de gente


“Todos procuram alguém para brincar.
Todos procuram, mas não vão encontrar.”
(Sadô-Masô – Móveis Coloniais de Acaju)



De arquitetura moderna, era a casa mais bonita do quarteirão. Portão bege, ou seria amarelo claro? Era claro assim como o branco muro. Duzentos e vinte e oito torneados em números grandes no topo. Acima deles, uma cerca elétrica protegendo de possíveis infortúnios. Paredes brancas margeadas por um gesso grosso e decorado não apresentavam sinal algum. Ao centro, um lustre simples, mas belo garantia iluminação da garagem. No chão, o piso de mármore perdia o brilho para uma crosta de poeira e uma fila de panfletos de propaganda de supermercado. Do lado esquerdo, um terreno baldio com o matagal crescendo e empesteando a vizinhança. Do outro lado, outra casa, mas nem tão bonita assim. A porta de madeira com desenhos em relevo ostentando uma fechadura dourada vivia fechada.
A casa estava sempre sozinha, inabitada. Passava dias abandonada e noites na companhia de um carro. Era sempre assim, ele deixava o carro lá todas as noites e logo após, partia na rua escura. No outro dia vinha buscá-lo de manhã cedinho. Dia após dia, a mesma sequência desinteressante. Isso me intrigava. Eu passava horas olhando o portão daquela casa. O que será que teria lá dentro? E esse homem? Quem é esse homem que tem uma casa, mas não mora nela? Eu podia passar horas sentada na calçada divagando histórias mirabolantes sobre a moradia que não morava ninguém.
Todas as vezes que o homem chegava e abria o portão para deixar o carro, eu já fixava os olhos buscando qualquer indício, qualquer coisa que suprisse e alimentasse minha curiosidade. O máximo que consegui uma vez foi ver um canto da sala. Ele abriu a porta e a manteve assim durante um tempo porque resolveu voltar para a garagem para recolher a publicidade indesejada. Eu tentava esticar o olhar como se em meio a córneas, pupilas e conjuntivas pudesse haver lentes de binóculos que fossem capazes de aproximar a imagem do meu campo de visão. De tanto fazer esforço acabei vendo os pés de um sofá coral. Imagino que fosse inteiro coral, não pude ver tudo. Vi também um pano, acho que um lençol, cobrindo esse sofá do pó solitário. Com dores nos pescoço depois de uma ginástica de girafas, pisquei e encolhi os ombros já que agora ele fechava a porta, o portão e mais uma vez partia.
Uma casa, um carro, um sofá. Uma vida solitária marcada por desgraças. Um homem desafortunado com sorriso de cabide. Tinha construído a casa tijolo por tijolo com o suor da labuta de muitos anos. Era feliz, foi feliz, quer dizer, se sentia feliz às vezes. Depois de namorar doze anos a vizinha da rua de cima, decidiu se casar. Nesse momento posso dizer que a felicidade se tornou uma constante na vida do casal, na correria dos preparativos, igreja, flores, buffet, no crescimento da casa em alicerces, paredes, encanamentos, na experiência do amor, da pressa e da espera. Tudo caminhava para um casamento perfeito, como sonharam desde o primeiro encontro.
Três meses antes do grande dia a casa já estava quase pronta. Faltavam alguns arremates finais, acabamento, móveis, decoração, coisas que fariam aos poucos, depois da mudança. Já começavam a sentir um frio na barriga, tradicional em noivos apaixonados. O casamento poderia ter dado certo, talvez, ou talvez pudesse ter durado um mês apenas. Nunca saberão. A vida de uma pessoa nunca dura mais ou menos tempo do que o planejado, nem mesmo um casamento marcado pode assegurar minutos a mais de existência. A morte nada entende de casórios ou recepções, é alheia a sentimentalismos e convenções e não é bem vinda na maioria dos ambientes que frequenta. A noiva bem que tentou, mas nada pôde fazer para evitar que o casamento fosse cancelado. Debaixo das ferragens, lutou por alguns suspiros a mais, mas logo o branco do vestido gravado em sua mente foi tomando ares fumês, até escurecer de vez. O noivo, com o coração arrancado violentamente, quis partir com a amada e realizar esse casamento a qualquer custo, mas ainda não era a sua vez, e ele teve que esperar. E assim, ele espera, dias, meses, anos cuidando de uma casa vazia.
Espere, acho que não foi bem isso que aconteceu. Estou confusa. Poderia ter sido. Assim como poderia ter sido um adultério. A noiva pega em flagrante com o cunhado roçando os corpos em um sofá de cor coral. Ou então, ele, o noivo manteve um romance tórrido com uma cocotinha aproveitadora durante os últimos cinco anos e fora descoberto às vésperas de descer o corredor ao som de Ave Marias.
Inúmeras histórias podem ter acontecido e meu passatempo preferido é imaginá-las a cada vez que miro a casa abandonada com portas que se encontravam sempre fechadas. Fechado era também o sorriso de seu dono, não estava pronto e não queria receber visitas, nem em casa, nem em sua vida. Pode ser que não tenha sido nada disso que eu pensava e que casamentos e noivas nunca tivessem feito parte daquele homem. Pode ser que ele seja só assim mesmo, triste e nem se dê conta. Acho que nunca descobrirei a verdadeira história daquela casa e daquele homem e prefiro assim, prefiro não saber, para que eu possa continuar imaginando como é seu interior, cômodos e móveis, sentimentos e emoções. Por fora, são só paredes brancas.

Flor derradeira

“As flores de plástico não morrem.” (Titãs)


Dia desses
Recolhi a última rosa
Jogada no chão frio
Uma única flor
Que perfumou o ar
E espinhou meu ser

Desfolhei cada pétala
E joguei contra o vento
Uma por uma seguindo um destino
Deixando uma fresta
Uma grande ferida
Aberta pra sempre aqui comigo

Não há o que fazer
O vaso já estava quebrado
Resta agora correr
Não olhar mais pra trás
Fechar o jardim
Enxugar cada lágrima

Flor da derrota
Às vezes flor do perdão
Flor do amor
Também da paixão
Flor do carinho
Flor da despedida
Encontrei no caminho
Flor, uma derradeira flor

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Na ponta do lápis

“Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.”
                                                                               (Herman Hesse)


Quis te escrever em versos e rimas
Na tentativa de te esculpir
E te fazer caber em palavras mentirosas
Pra te encaixar no meu poema

Acabei por criar um você
Rabiscado, apagado, reescrito
Em letras desenhadas
Afundadas numa folha reciclada

Via surgindo em minhas escrituras
Partituras para cantar a mesma música
Só que agora em outro tom
O tom do meu diapasão

Quis te emprestar a vida
E dar mais corda
Num você diferente de você
Que só existe em mim

domingo, 5 de dezembro de 2010

Mosca varejeira


“Vou engarrafar essa dor, vou engarrafar a saudade, vou me embriagar de tristeza bendizendo ela vira beleza.”
(Eu não sou Chico mas quero tentar – O Teatro Mágico)


Alcholism Royalty Free Stock Photo
 

Estou bêbado
Bêbado de bebida mesmo
Tudo faz sentido
Nada é de verdade
Varejeirando sábados
Como se tudo fosse acontecer
E no final é tudo igual
A zunir o mais alto que podem
Na tentativa desastrada
De entorpecer todo o ar
Se por a não mais se indispor
Sem conseguir raciocinar
E gargalhar bolhas de álcool
Para voltar mais uma vez
A vomitar domingos e segundas

Despedida


“Não foi o começo quando nós chegamos aqui. Não será o final quando terminarmos. É um fragmento da vida, sem começo nem fim.”         
 (Strindberg)



- Oi…
- Oi … Tudo bem?
- Tudo. Não esperava te encontrar aqui.
- Eu gosto daqui.
- Por que você sumiu?
- Eu não sumi. Eu nunca sumo. Foi você quem nunca mais me procurou.
- Achei que você não queria ser encontrada.
- Se não quisesse não teria te dado o telefone no primeiro dia.
- Por que não retornou minhas ligações?
- Não tive vontade.
- Eu te fiz alguma coisa?
- Não. Fez nada não.
- Estou com saudade de você, do seu beijo, da sua voz, do seu cheiro.
- Estou indo pra Itália.
- Quando?
- Fim do mês.
- Por quê? Fazer o que? Com quem?
- Sempre quis ir para a Europa e acho que agora chegou a hora.
- Vai ficar quanto tempo?
- Um ano, seis meses, uma semana, não sei ainda.
- E vai fazer o que lá?
- Posso fazer o que eu quiser. Um curso de História da Arte em Florença, melhorar meu francês em Paris, uma especialização em Oxford. Posso fazer tudo, ou talvez nada disso e me arrepender e voltar.
- Por que agora?
- Eu não tenho o que perder. Posso muito bem largar o meu emprego mixuruca aqui. Arrumo outro depois se precisar. Família e amigos são pra sempre, não estou abandonando ninguém. Sei que todos vão estar do meu lado onde quer que eu esteja. Até porque não vou ficar por lá a vida inteira.
- Você vai com alguém?
- Você está vendo aquele moço loiro ali? Ele é um amigo meu. Na verdade um conhecido. Amigo da família, sabe? Ele é italiano e veio passar o fim de ano aqui no Brasil. Desde a outra vez que ele esteve aqui que ele ofereceu a casa dele na Itália e me convidou para ir com ele. Resolvi aceitar agora. A gente parte no final de janeiro.
- Ele faz o que?
- É médico em Roma.
- E você tem alguma coisa com ele?
- Não. Nada a ver. Não que ele não tenha tentado, mas não é o que eu quero.
- Você dormiu com ele?
- Nem beijar eu beijei. Por que? Faz diferença?
- Não sei. É você quem está indo embora com ele. Você deve saber.
- Falando assim parece que sou uma prostituta de luxo. Estou só indo na companhia dele e vou ficar na casa dele enquanto estiver na Itália. Vou pagar minha viagem e estou fazendo isso por mim. É só. Você sabe que eu não sou esse tipo de mulher. Já falamos sobre isso.
- Tem alguma coisa que eu possa dizer para você ficar?
- Minha mãe já tentou essa parte.
- Eu... eu me apaixonei por você.
- É a única coisa que você não podia ter feito. O que a gente viveu foi muito legal. Misturar amor e paixão nessa história não dá certo.
- O que você tem contra a se apaixonar?
- Nada contra. Só acho desnecessário.
- Como assim?
- A vida dá tantas voltas que às vezes eu fico até tonta. E nessas voltas a gente se apaixona e é só dar mais uma voltinha para desapaixonar. Sempre vai ter alguém partindo e sempre vai ter alguém chorando. É inevitável.
- Mas e tudo o que você pode viver quando está amando?
- Eu sei. São coisas lindas. Mas não valem à pena.
- Podem valer.
- É uma escolha, não é? É complicado isso. A gente sabe que depois de comer, muita coisa vai sair do corpo esgoto abaixo e que arrumamos a cama todas as manhãs para desarrumar à noite e ainda limpamos a casa e escovamos os dente e tomamos banho mesmo tendo a certeza que no final vai estar tudo do mesmo jeito, desarrumado, sujo, gasto. Trabalho jogado fora. Mesmo assim a gente continua fazendo essas coisas diariamente. Isso porque sabemos que precisamos fazer certas coisas. O resultado não importa, o que importa é o processo. E assim é a vida. Não é como ela vai acabar. Sabemos que ela vai acabar cheirando mal engavetada numa caixa de mármore. Nem por isso paramos de viver. Viver é o que acontece dia após dia. O mesmo é apaixonar-se. Sabemos que não vai acabar bem e mesmo assim nos aventuramos só para poder ter a sensação de ventinho na barriga de vez em quando. Acho louvável, mas não para mim. Acho que ainda posso viver sem brisas estomacais. Posso estar perdendo muita coisa, mas pelo menos não me frustro no final. Eu decidi não arrumar mais a cama, não escovar mais os dentes e não tomar mais banho quando o assunto é amor. Pelo menos por enquanto.
- Você não sentiu nada por mim?
- Claro que senti. Não tenho coração de pedra. Senti muito carinho, muita vontade de estar com você, muita vontade de você.
- Eu realmente gostei de você. Eu ainda gosto.
- Eu também gosto de você. Gosto do que a gente foi. Nunca fomos nada e ao mesmo tempo fomos tudo um para o outro. Não posso dizer que fui sua amiga, não tínhamos tanta intimidade assim. Também não fui sua namorada, definitivamente. Acho que nem sua amante eu fui, porque apesar da química louca de sair faíscas, nunca fomos até o final. Fomos nós, você e eu, conversando, rindo, beijando, passando o tempo, sentido coisas sem ter que se preocupar com nada. Passava horas com você no final de semana e não ficava ansiosa aguardando uma ligação no dia seguinte porque sabia que você poderia não ligar. E quando ligava eu ficava feliz. Sem expectativas, sem cobranças, você sendo você e eu sendo eu.  
- Isso te basta?
- Nesse momento da vida sim. Foi muito casual o que a gente viveu, muito solto e por isso só temos lembranças boas. Quando fecho os olhos e penso em você eu só me lembro das risadas que eu dava a cada bobagem que você falava. E lembro a minha pele arrepiada todas as vezes que você se aproximava da minha nuca. Lembro ainda as ligações no meio da madrugada e lembro as cômicas e frustradas tentativas que você tinha de me levar para cama e mesmo não conseguindo mantinha o bom humor e o carinho. Tive tudo isso ao seu lado, ia querer mais o que?
- Me ter do seu lado para sempre, e rir sempre, e sentir arrepio sempre que quisesse e se render ao tesão e parar de fazer jogo duro e quem sabe finalmente assumir de vez isso que a gente teve?
- E cair na rotina? E ter que cravar risadas mecânicas e perder os arrepios em beijos gelados e ainda por cima assumir o que nenhum de nós sabe o que é, ou foi? Não, nós não precisamos disso. Arnaldo Antunes já disse, “somos o que somos: inclassificáveis.” Se o mestre disse isso, quem sou eu para discordar?
- A gente poderia ter sido feliz.
- Nós fomos felizes. Do nosso jeito.
- Posso te dar um beijo de despedida?
- Esse não é você. Pedindo um beijo? Você nunca pediria um beijo.
- Fiquei com medo do carcamano mafioso.
- Sempre amei seu bom humor.
- Sempre amei você.
- Não fala mais nada.
- Não me deixa falar.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Caminhada


"... uma caminhada cheia de contratempos até descobrir com alívio, lá no fim, que não há fim, a vida segue.”
                                              (Martha Medeiros)


Gosto de andar a pé
Ouço vozes, vejo caras
Fantasio histórias, crio pessoas
Me reinvento a cada passo
Chutando pedregulhos
Até esfolar o bico do pé
Em marcha lenta e passos largos
Continuo a caminhada
Sol de inverno ardendo os olhos
Chuva de verão molhando bobos
E nas costas uma mochila
Pesada, rota e farta
É preciso carregar
É preciso caminhar

Estão mudadas as calçadas
Fizeram novos buracos
E plantaram novas árvores
Não são os mesmos também os sonhos
Envelheceram sentados na mureta chapiscada
Paralisados olhando os carros
De braços cruzados
E chapéu preto na cabeça
Ficarão ali por mais um tempo
Enquanto há ainda pés para andar
Calçadas para furar
Mochilas para carregar
E história para contar

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O dia seguinte


“De todas as maneiras que há de amar nós já nos amamos (...)
Agora já passa da hora, tá lindo lá fora, larga minha mão.”
(De todas as maneiras – Chico Buarque)


O ar está parado
Pesado de um almíscar pernoitado
Anuviado de um cigarro mal apagado
A espuma já murchou
A balbúrdia já cessou
Os lençóis estampam a brancura que não têm
E o riscado bolero silencia
Não há de ser nada
São só fios amarelos indiscretos
Que descaram e revelam
Espelhos tortos, almas torpes
Bobeiras, besteiras, bobagens
Lampejos de lucidez
Clareiam as memórias
Embebidas em gim e tônica
Voltando a ser o que foram
Ainda sem saber o que são

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Buraco

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
(O Buraco do Espelho – Arnaldo Antunes e Edgar Scandurra)



Canetas, clipes, pilhas palito, cacos de vidro, a cabeça de um anjo sem asas, retratos pisados, CDs quebrados, cortinas rasgadas, almofadas espalhadas. Ligar para o Jorge amanhã com urgência. IPVA 2011, Gol Preto, R$1.120,00. Guia da TV a cabo mês de agosto. A realizar-se no dia quinze de dezembro de 2010 às dezoito horas na Igreja Sagrado Coração. Chaves, chaveiros, lembrancinhas. Fui para Aparecida e lembrei-me de você. Torre Eiffel, Mickey Mouse, areias de Maceió. Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Controle remoto, fios, fones de ouvido, mais fios. Um único Sonho de Valsa quebrado em meio a cacos de cristal.
            Iogurte de morango no chão, latas de cerveja abertas, alface, temperos, panelas espalhados pelo chão. Comprar produtos de limpeza, sabonetes, arroz, feijão, café, açougue e varejão. Copos sujos na pia e bitucas de cigarro sobre a mesa. Toalhas de renda desfiadas. Gavetas retiradas, talheres remexidos, geladeira aberta. Inglês segundas e quartas e violão nas terças e quintas. Imã de caranguejo faltando uma perna.
            Roupas, muitas roupas sobre a cama e o chão também. Lingerie, pijama, quimono, terno, vestido. Vidro de perfume estilhaçado envolto por uma poça. Batom, blush, sombra, todas as cores pelo espelho trincado. Porta-jóias com bailarina solitária. Secador de cabelos, gel de barbear, gilete e chinelos. Sapatos desencaixotados.
            Sorriso de pasta de dente no Blindex do banheiro. Pílulas, gotas, bolinhas, frascos e emplastos. Papel higiênico desenrolado. Toalhas de banho sujas e torneira aberta. Fio dental caído em meio às fezes no bidê. Uma nuvem de algodão e cotonetes.
            Livros, enciclopédia e revistas desfolhados. Edital do concurso da Promotoria do Estado. Apostila, lápis, grafite, grampos e papel. Papel por toda parte. Miniaturas reduzidas a pó e manuais velhos de eletrônicos. Eu te amo, Feliz Dia dos Namorados. Lembrança da Primeira Eucaristia. Certidões, passaporte, recibos e diplomas.
Invadido, inválido, com mãos, pés e coração atados. Seu corpo estava ali escancarado como se todos os órgãos tivessem sido arrancados e estivessem ali expostos para uma platéia masoquista que fazia gosto em ver derramar cada gota do seu sangue. Tamanho era seu nojo que sentiu uma espuma sair do seu estômago rumo à boca. Quis vomitar, mas nem para isso tinha forças. Havia sido violentado, dilacerado e agonizava sob os restos mortais de uma vida agora apunhalada e espezinhada. Era como se o mundo conhecesse os seus maiores segredos e manias, e conhecendo-os, risse da sua cara com deboche. Sentindo-se sujo, deixou-se escorregar no vão da porta. Fechou os olhos e os abriu várias vezes na tentativa de ser somente uma ilusão. Deixou a cabeça cair e ali ficou durante algum tempo até ouvir o barulho das sirenes. Prejuízo financeiro incalculável e um rombo desmedido na alma. Um buraco que TVs de plasma, laptops e milhares de oncinhas não seriam capazes de tapar. Tinha no peito uma fechadura como aquelas utilizadas por primos adolescentes para observar intimidades e gozar de alegria com tamanha astúcia. Um buraco negro aberto à marretadas com direito à visitação e cochichos dos vizinhos. Uma alma esburacada. Era isso que lhe restava.  

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

11 versos tristes

“Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?”
(Acordar, viver - Carlos Drummond de Andrade)

Há ainda muita terra pra comer
Há muito vidro pra quebrar
Há muito doce pra mexer
Não se pode mais piscar
Nem fraquejar nem gaguejar
Estão todos te olhando
A carregar o alfabeto inteiro no peito
Pendurando no cabide do fracasso
O terno gasto da culpa
De ter vendido a própria mãe
Por um pedaço da maçã

domingo, 21 de novembro de 2010

C – A – L – M – A

“De onde vem a calma daquele cara?
Ele não sabe ser melhor, viu?”
(De onde vem a calma – Los Hermanos)


Calma
Só me sabem pedir calma
Sabe o que faço com a calma?
Arranco da alma
Que nunca se cala
Enfio na mala
E jogo na lama
Já que ninguém me ama
Choro na cama
Arrume você mesmo um DNA de barata!

Fogos de artifício

“É tudo novo de novo, vamos nos jogar onde já caímos.”
(Tudo novo de novo – Paulinho Moska)

O ano já não era mais o mesmo
O velho vira novo num estouro
Lampejos decoram o breu
Corpos cinzentos e cansados agora são incandescentes
Embebidos em faíscas e chispas
Como se até o virar de mais um tempo
Ainda pudessem continuar acessos
Nem que for por apenas fria e opaca,
Mas única centelha

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Chorando morangos

"Eu to chorando pelo que podia ter sido e não foi.”
                                 (minissérie Queridos Amigos)

O sal da lágrima ardia
Mais do que já estava ardendo
O ritmo batia acelerado
Quase parando
Apertado pra esconder a dor
De mil garfos espetando a carne

O gosto do choro amargava a boca
Engolido à força goela abaixo
Enchia o papo, o peito, a pele
Sensação de secura
Nos cabelos e na alma
Soltos pelo vento, presa pelos homens

O corpo perdeu a obediência
Inflava e murchava numa vida de Alice
Com miolos encharcados
Pingando vodka com morangos
Vermelhos feito sangue
Sangue salgado de lágrimas.

Instantânea

Fome de miojo
Amizade em SMS
Um expresso fecha a conta:
Emoções em Polaroid.

Baú

“As laranjas não existem porque são de supositório.”
                                                                     (Chaves)




A: He é para menino e She é para menina. Como o He-man e a She-ra. Lembram?
B: Quem são esses, teacher?
A: Os heróis do castelo de Grayskull.
B: Eu assisto Dragon Boosters.
C: Eu adoro Dragon Boostres.
D: Eu não gosto de Dragon Boosters.
A: O que é Dragon Boosters?

...

O que tinha acontecido com o homem da espada e a princesa do poder? Acho que cochilei em frente à televisão e dia desses, quando acordei, o que restava eram as lembranças de bichinhos azuis com gorros brancos e ursinhos com desenhos na barriga.
Muita coisa muda, outras permanecem as mesmas como o dono da Porta da Esperança dançando Hot Hot Hot com o microfone preso à gravata. Tem certas outras coisas que simplesmente desaparecem, enquanto outras sobrevivem ao bolor dentro de um barril numa vila mexicana ou segurando uma marreta biônica e zás, zás, zás. Fofões, Bozos e Mafaldas ameaçam ressurgir em cópias fajutas, sem muito sucesso.
O tempo perguntou pro tempo quanto tempo o tempo tem. Acho que o tempo suficiente para acontecer e deixar saudade. Afinal de contas, o que seria das pessoas com um buraco no peito sem sentir melancolia e a dorzinha de uma saudade em dia de chuva? Saudade de viver Anos Incríveis nos corredores de uma escola americana ou saudade da vontade de ter um gravador que levava um menino pro Mundo da Lua. Saudade de uma rua cheia de pombos ou de um mar onde dois peixes tagarelavam e assistiam a desenhos animados. Saudades de três tartaruginhas valentes ou ainda de gatos corajosos do planeta de Thundera. Ou quem sabe, saudade do espírito de equipe de uma turma liderada por um alce ou de um atrapalhado inspetor e toda sua bugiganga.
É só fechar os olhos e ver balões mágicos no céu, no mesmo céu onde voava o homem da capa vermelha ou ainda monstros japoneses e suas piruetas em meio a letras e símbolos esquisitos. As garotas de Charlie também passeavam por ali, bem próximo de onde uma garota vestida de rosa shocking encontrava o seu amor. Os sábados eram dias de escola para uma turma de cinco adolescentes estranhos e às terças, pirataria já não era mais crime na TV. A escola também era lugar de encontro para uma Galera do Barulho sempre salvos pelo sino.
Alô Teresinha, isso me cheira a naftalina ou será glacê de bolo que Três Patetas esfregavam na cara um do outro? Na verdade, tem cheiro de crime no ar, crime militar de um esquadrão de primeira. Pode também ser de fogo vindo de um reino encantado de cavalos, princesas e rainhas. Rainha havia também longe dali, uma que sonhava em ser rainha da dança, em ritmo de embalo, que por vezes também foi quente num resort ali por perto. Reinos encantados existiram sempre, e eram adorados especialmente se além de encantado era medieval e mitológico povoado por ursos mais inteligentes que a maioria por aí. Outro mundo também existia além da montanha russa e era habitado por dragões e visitado por jovens do mundo real.
E senta que lá vem história. História de uma fada criança, de um homem que conversa com uma cobra, de um homem mascarado que achava que resolvia mistérios, de uma esfinge sabichona, de um palhaço com spray na mão, de um pinguim tocador de piano, de professores nada convencionais. Tudo isso assistido por uma família. Famílias também sempre fizeram parte desse mundo. São famílias do passado, do presente e do futuro em aventuras semanais.
Ursos, palhaços, dragões, reis, princesas, famílias, criaturas, gente... Tudo guardado num saco mofado que ao ser aberto libera lembranças de uma época. Uma vez ou outra abro o saco. Vez ou outra só.

domingo, 14 de novembro de 2010

Arco-íris de anil

“Quem souber de alguma coisa venha logo me avisar
Sei que há um céu sobre essa chuva e um grito parado no ar.”
(Um grito parado no ar – Toquinho e Gianfrancesco Guarnieri)



As gotas de chuva escorregavam pela vidraça do apartamento. Batiam contra o vidro e deslizavam janela abaixo deixando seus rastros. Eram finos esguichos d’água ainda tímidos. Fiquei por um momento a contar as gotas quando me distrai com os raios do sol, igualmente tímidos, numa batalha travada com os pingos. Nesse cabo de guerra formado, quanto mais força colocavam, mais a corda se esticava. Uma corda colorida e arqueada de fora a fora.  
Dizem que o arco-íris tem sete cores. Nunca consegui enxergar mais do que seis. Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e violeta. Que diabo de cor é anil? Azul e anil são a mesma cor. Para falar a verdade, se completam. Existe o azul marinho, o azul petróleo, o azul anil. E nem por isso deixam de ser azul. Sentada ao pé da janela, ainda olhando a corda colorida, eu me imaginei anil. Naquele momento eu não era nem azul nem deixava de ser. Eu era simplesmente anil. Como definir o anil? Um azul que se cansou de ser azul e resolveu se rebelar e trocar de nome. Era azul na sua essência, mas carregava uma tonalidade nova que azul nenhum jamais tivera.
Dizem que o olho humano, algumas vezes, não pode captar o anil. Ele passa despercebido em meio às outras cores. Não é nem primário, nem secundário, nem adiciona, nem subtrai. Tem gente que acha que anil nem é cor, nem mesmo na caixinha de trinta e seis. Talvez não seja mesmo. Talvez o anil seja uma mera invenção de Newton para completar o seu espectro perfeito. Sete dias, sete notas, sete cores. Que obsessão!
Obcecada estava eu a contar pingos e cores no céu. Sendo anil e querendo ser ora azul, ora violeta. A velha já me tinha escalado para fazer parte do arco-da-chuva ou seria do sol? Só sei que era um arco. Um arco-da-aliança no qual as cores coexistiam para alegrar o casamento da viúva, ou será do espanhol? Pensando bem, acho que o anil não me cai tão mal assim. Ser só azul é muito chato e violeta o tempo todo me daria uma canseira.
           A chuva puxou mais forte e venceu essa batalha. O sol envergonhado se escondeu por algum tempo. A corda se afrouxou aos poucos e sumiu em meio às gotas gordas que se uniam e agora batiam com muita força na minha janela. Cansada de intrometer em briga alheia, fechei a cortina e liguei a TV. Estava feliz por ser anil. Somente anil.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Boia Clara, boia

“Brilha a luz duma janela
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.”
(A noite é muito escura – Alberto Caeiro)

Clara boia
Boiar
O ar
Respirar

Clara boia
Clarear
O ar
Iluminar

Queria eu a vida de claraboia!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Efeito sonoro

“O que será que me dá, que me queima por dentro será que me dá, que me perturba o sono será que me dá?”
                        (O que será (À flor da pele) – Chico Buarque)


Mais um carro e uma moto e outro carro
Quem ligou o ventilador?
Esse telefone tocando de novo
Boa noite, está no ar o Jornal Nacional
Abaixa o volume!
Fecha porta, abre porta
Hey Jude, don’t let me down
Desliga logo esse chuveiro

SILÊNCIO

Passa carro, passa moto
Deixa rodar
Deixa gritar
Boa noite pra você também Bonner
Volume, cadê o volume?
Bate porta, bate
Que música é essa?
Quer banhar, deixa banhar

SILÊNCIO

Já não posso mais ouvir
Até o vento está parado
Preciso preencher meu tempo
Pulso, estou perdendo o pulso
Já não sou tão mais igual
Qualquer onda ou vibração
Que possa completar todo esse vácuo
Livrai-me de pensar

SILÊNCIO

Onde foi toda essa gente?
Perguntas, perguntas, perguntas
Não quero mais responder
Pára de pensar, não quero mais pensar
Porque tá doendo tanto?
Vou gritar, tenho que gritar
Meus tímpanos já não mais aguentam
Silêncio ensurdecedor.

SILÊNCIO

Coração de menininha


“Pode parecer promessa, mas eu sinto que você é a pessoa mais parecida comigo que eu conheço, só que do lado do avesso.”
                                                     (Avesso – Ceumar)

Já disseram que as mães não deveriam morrer nunca... acho que as irmãs também não... deveriam ser eternas... Pra você Nanina:


É um gato! E a procissão ia descendo rua abaixo. Agachada, com o vestidinho branco, olha por debaixo do portão e confirma: é um gato mãe! Fica quieta menina o andor está passando. Amém, amém, amém. Não grita menina, já está chegando. E assim foi até chegar à porta da igreja.
Cachinhos como fios de sol enrolados um a um, olhinhos que carregavam o mar inteiro dentro deles e a pele alva como neve com salpicos nas bochechas. Assim era ela, a menina. Inquieta, risonha, emburrada, franzia a testa, e fazia bico e gargalhava também, mostrando os dentinhos. Vivia com os pés e mãos enlameados em meio às plantas e animais. Queria ter o zoológico em casa, mas o máximo que conseguiu foi um peixinho num saco plástico ganhado na turma de natação em festa de comemoração de fim de ano. Trinta e cinco dias foi o que durou. Não por falta de cuidado, mas por ser da natureza deles. Peixes de saco plástico não nasceram para viver muito. Anos mais tarde ganhou um galinho Galizé. Esse até que durou bem. Com vida, foi-se embora para a fazenda. A cantoria ao despertar não agradou a vizinhança. Pobre Galizé.
Chega de animais, pelo menos por enquanto. A menina então se conformou em brincar com as criaturinhas todos os sábados e feriados quando ia para a fazenda. E se esgotava correndo, pulando, rolando, subindo e descendo em árvores, caindo e chorando e correndo de novo que só mesmo o tanque com bucha e sabão de coco dava conta de desencardir dedos e unhas. Banho tomado era como se a pilha fosse retirada, chega a hora de dormir. Dorme tranquila menina e que os anjos lhe protejam!
Muitas noites foram dormidas e muitos dias foram brincados. Os cachinhos se alongaram Os olhinhos ainda eram feito o mar, mar que ora era maré cheia, ora baixa-mar. A alvura era a mesma, assim como eram os mesmos, nas bochechas, os salpicos que agora também lhe pintavam o nariz discretamente. Nunca deixou de amar os animais. Convivia agora em meio a papagaios e calopsitas, a vizinhança não reclama mais.  A menina continuava a brincar, brincava de ser grande, mas grande mesmo era seu coração. Grande e confuso. Gostava muito dos bichos, mas resolveu mesmo foi cuidar de gente. Cuidava tanto de todas as gentes que às vezes esquecia-se dela mesma. Era menina, era moça, parecia mãe. Tinha um tempero especial, azedinho-doce. Só não podia errar na dose.
Depois de um dia exaustivo brincando com a vida, a menina dorme. Dorme como quando a vida era o pomar da fazenda velha. Dorme tranqüila menina e que os anjos lhe protejam!

domingo, 7 de novembro de 2010

Apenas o fim

“Eu não entendo essa mania que as pessoas têm de querer saber o que vai acontecer. Não sei, pra mim, viver é jogar Detetive. Você sabe que alguém vai morrer no final. Agora, se vai ser com uma faca no hall ou com um castiçal na sala de estar... Eu acho que é legal você ir descobrindo aos poucos, jogada a jogada, explorando todo o tabuleiro.”
(Antônio, personagem de Gregório Duvivier em Apenas o fim, filme de Matheus Souza)

 

Não sei por que demorei tanto, mas só ontem assisti ao filme “Apenas o fim”. Dois jovens universitários terminando um relacionamento com apenas uma hora para conversarem e se despedirem para talvez nunca mais se verem. Um filme de diálogos. Tive uma sensação de déjà vu ao ler a sinopse. Era muito “Antes do amanhecer” e “Antes do pôr-do-sol”pro meu gosto. Não que eu não tenha gostado das duas obras de Richard Linklater, pelo contrário, mas não me parecia à primeira vista uma idéia muito original. Isso porque a proposta de um filme de personagens e não de ações, no qual os diálogos se personificam e ganham papel de protagonista tem que ser muito bem feita para dar certo. Os diálogos têm que ser muito bons.
Já nas primeiras cenas me surpreendi. Um texto leve com diálogos despretensiosos e simples. Deixei-me levar por aquelas palavras, por aquela história, por aquelas pessoas. Era sim fortemente influenciado pelos filmes estrelados por Ethan Hawke e Julie Delpy, mas tinha uma dinâmica e linguagem próprias, jamais exploradas em outros filmes. Algo tão próximo do real, tão natural só poderia ter partido de um jovem também universitário e idealista. Matheus Souza consegue tirar uma foto de toda uma geração inquieta, perdida e árida por respostas. Em uma entrevista, o jovem cineasta disse que a geração a qual ele retrata e da qual também faz parte é definida por seus gostos. Definimos-nos por nossas comunidades no Orkut, disse Matheus. Elas nada mais são do que uma lista de gostos e preferências. O casal do filme busca se conhecer, busca a intimidade através de diálogos ingênuos e ao mesmo tempo reveladores sobre o que eles gostam ou não gostam, desde uma simples fruta ou um personagem da TV, até questões mais intensas como posição política e crença religiosa, traçando assim personalidades e perfis. “Eu sou aquela vontade que dá de repente de tomar Fanta uva”. Essa frase resume a obra. Através dela fica clara a intenção do filme de ser discreto, mas que incomoda, que mexe, que faz pensar, que faz buscar. Nesse momento tive que pausar o filme, anotar a frase e pensar: e eu, o que eu sou? São cenas que revelam momentos de epifania dos personagens e que fazem dar um clic na cabeça do espectador que se reconhece naquela situação e se emociona, e ri junto e chora junto. Isso é possível não por apelos sentimentais cafonas e hollywoodianos, mas simplesmente por ser verdade. Eu pude ser os personagens em alguns momentos e em outros eu sabia que os conhecia. Em outros ainda eu apenas tive vontade de conhecê-los.
Confesso que chorei na última cena. Compulsivamente. A ponto de não ter coragem de colocar outro filme com medo de que ele apagasse as sensações deixadas pelo primeiro. Chorei não por causa do fim do romance, que já estava programado desde o começo, mas por tudo o que o casal tinha vivido. A partir desse momento eu descobri porque as pessoas choram quando alguma coisa acaba. Não é pelo fim porque o fim muitas vezes é só o começo, mas pela saudade de tudo o que foi. A vida não é nada se não uma coleção de emoções, de sentimentos, de cores, de sons, de experiências. Deve ser por isso que eu choro todo final de ano, não porque o ano acabou, acabar é conseqüência e eu já sei que tem um novinho em folha chegando. Eu choro pela lembrança de todos os momentos bem vividos, ou não, durante o ano que se esvai.
As imagens dos dois personagens se afastando eram misturadas com imagens de momentos compartilhados durante o período de namoro. Simplesmente poético, comovente. Depois do desespero de tocar em feridas e pôr em erupção um vulcão inativo, pude sorrir. Sorri porque já não me sentia sozinha. Não mais. Estou de mãos dadas com uma geração que não se contenta com o linear, com o cotidiano, com a falta de respostas. Estou de mãos dadas com uma geração que sente o bicho comichão dentro do peito e que não toma um remedinho para mascarar a dor. Estou de mãos dadas com uma geração que sai da zona de conforto nem que por apenas alguns minutos e se libertam das correntes do comodismo.
Definitivamente um filme para guardar nas caixas da memória para poder abri-las sempre que o monstro do fim, do acabou, do terminou sair de dentro do armário. O que vale mesmo é explorar todo o tabuleiro, afinal de contas, é apenas o fim.