sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Presente para um estranho


“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido.”  (Clarice Lispector)


disseram não me entender envolta por metáforas e jogos de palavras e não me  existindo em versão comentada e panfletos explicativos resolvi me desnudar de pontos finais vírgulas letras maiúsculas parágrafos e rimas para que finalmente vejam que tudo isso não é nada mais que um grito por socorro ou apenas uma forma de expressar o que durante noites e noites me povoam a cabeça e me tiram o sono e ainda me fazem acreditar que sou sensível demais para um mundo casca grossa que imprudentemente me esfola diariamente mas que também me presenteia de forma inesperada com mentes evoluídas um tanto quanto egocêntricas e complicadas feitas justamente para me questionar e me descobrir mesmo que seja num terço de vida já que os outros dois terços ficam por conta da imaginação e criatividade de cada um até porque me entender como diria Clarice é uma mera questão de intencionalidade sensibilidade psicologia comportamental e frações matemáticas

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Paredes de gente


“Todos procuram alguém para brincar.
Todos procuram, mas não vão encontrar.”
(Sadô-Masô – Móveis Coloniais de Acaju)



De arquitetura moderna, era a casa mais bonita do quarteirão. Portão bege, ou seria amarelo claro? Era claro assim como o branco muro. Duzentos e vinte e oito torneados em números grandes no topo. Acima deles, uma cerca elétrica protegendo de possíveis infortúnios. Paredes brancas margeadas por um gesso grosso e decorado não apresentavam sinal algum. Ao centro, um lustre simples, mas belo garantia iluminação da garagem. No chão, o piso de mármore perdia o brilho para uma crosta de poeira e uma fila de panfletos de propaganda de supermercado. Do lado esquerdo, um terreno baldio com o matagal crescendo e empesteando a vizinhança. Do outro lado, outra casa, mas nem tão bonita assim. A porta de madeira com desenhos em relevo ostentando uma fechadura dourada vivia fechada.
A casa estava sempre sozinha, inabitada. Passava dias abandonada e noites na companhia de um carro. Era sempre assim, ele deixava o carro lá todas as noites e logo após, partia na rua escura. No outro dia vinha buscá-lo de manhã cedinho. Dia após dia, a mesma sequência desinteressante. Isso me intrigava. Eu passava horas olhando o portão daquela casa. O que será que teria lá dentro? E esse homem? Quem é esse homem que tem uma casa, mas não mora nela? Eu podia passar horas sentada na calçada divagando histórias mirabolantes sobre a moradia que não morava ninguém.
Todas as vezes que o homem chegava e abria o portão para deixar o carro, eu já fixava os olhos buscando qualquer indício, qualquer coisa que suprisse e alimentasse minha curiosidade. O máximo que consegui uma vez foi ver um canto da sala. Ele abriu a porta e a manteve assim durante um tempo porque resolveu voltar para a garagem para recolher a publicidade indesejada. Eu tentava esticar o olhar como se em meio a córneas, pupilas e conjuntivas pudesse haver lentes de binóculos que fossem capazes de aproximar a imagem do meu campo de visão. De tanto fazer esforço acabei vendo os pés de um sofá coral. Imagino que fosse inteiro coral, não pude ver tudo. Vi também um pano, acho que um lençol, cobrindo esse sofá do pó solitário. Com dores nos pescoço depois de uma ginástica de girafas, pisquei e encolhi os ombros já que agora ele fechava a porta, o portão e mais uma vez partia.
Uma casa, um carro, um sofá. Uma vida solitária marcada por desgraças. Um homem desafortunado com sorriso de cabide. Tinha construído a casa tijolo por tijolo com o suor da labuta de muitos anos. Era feliz, foi feliz, quer dizer, se sentia feliz às vezes. Depois de namorar doze anos a vizinha da rua de cima, decidiu se casar. Nesse momento posso dizer que a felicidade se tornou uma constante na vida do casal, na correria dos preparativos, igreja, flores, buffet, no crescimento da casa em alicerces, paredes, encanamentos, na experiência do amor, da pressa e da espera. Tudo caminhava para um casamento perfeito, como sonharam desde o primeiro encontro.
Três meses antes do grande dia a casa já estava quase pronta. Faltavam alguns arremates finais, acabamento, móveis, decoração, coisas que fariam aos poucos, depois da mudança. Já começavam a sentir um frio na barriga, tradicional em noivos apaixonados. O casamento poderia ter dado certo, talvez, ou talvez pudesse ter durado um mês apenas. Nunca saberão. A vida de uma pessoa nunca dura mais ou menos tempo do que o planejado, nem mesmo um casamento marcado pode assegurar minutos a mais de existência. A morte nada entende de casórios ou recepções, é alheia a sentimentalismos e convenções e não é bem vinda na maioria dos ambientes que frequenta. A noiva bem que tentou, mas nada pôde fazer para evitar que o casamento fosse cancelado. Debaixo das ferragens, lutou por alguns suspiros a mais, mas logo o branco do vestido gravado em sua mente foi tomando ares fumês, até escurecer de vez. O noivo, com o coração arrancado violentamente, quis partir com a amada e realizar esse casamento a qualquer custo, mas ainda não era a sua vez, e ele teve que esperar. E assim, ele espera, dias, meses, anos cuidando de uma casa vazia.
Espere, acho que não foi bem isso que aconteceu. Estou confusa. Poderia ter sido. Assim como poderia ter sido um adultério. A noiva pega em flagrante com o cunhado roçando os corpos em um sofá de cor coral. Ou então, ele, o noivo manteve um romance tórrido com uma cocotinha aproveitadora durante os últimos cinco anos e fora descoberto às vésperas de descer o corredor ao som de Ave Marias.
Inúmeras histórias podem ter acontecido e meu passatempo preferido é imaginá-las a cada vez que miro a casa abandonada com portas que se encontravam sempre fechadas. Fechado era também o sorriso de seu dono, não estava pronto e não queria receber visitas, nem em casa, nem em sua vida. Pode ser que não tenha sido nada disso que eu pensava e que casamentos e noivas nunca tivessem feito parte daquele homem. Pode ser que ele seja só assim mesmo, triste e nem se dê conta. Acho que nunca descobrirei a verdadeira história daquela casa e daquele homem e prefiro assim, prefiro não saber, para que eu possa continuar imaginando como é seu interior, cômodos e móveis, sentimentos e emoções. Por fora, são só paredes brancas.

Flor derradeira

“As flores de plástico não morrem.” (Titãs)


Dia desses
Recolhi a última rosa
Jogada no chão frio
Uma única flor
Que perfumou o ar
E espinhou meu ser

Desfolhei cada pétala
E joguei contra o vento
Uma por uma seguindo um destino
Deixando uma fresta
Uma grande ferida
Aberta pra sempre aqui comigo

Não há o que fazer
O vaso já estava quebrado
Resta agora correr
Não olhar mais pra trás
Fechar o jardim
Enxugar cada lágrima

Flor da derrota
Às vezes flor do perdão
Flor do amor
Também da paixão
Flor do carinho
Flor da despedida
Encontrei no caminho
Flor, uma derradeira flor

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Na ponta do lápis

“Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.”
                                                                               (Herman Hesse)


Quis te escrever em versos e rimas
Na tentativa de te esculpir
E te fazer caber em palavras mentirosas
Pra te encaixar no meu poema

Acabei por criar um você
Rabiscado, apagado, reescrito
Em letras desenhadas
Afundadas numa folha reciclada

Via surgindo em minhas escrituras
Partituras para cantar a mesma música
Só que agora em outro tom
O tom do meu diapasão

Quis te emprestar a vida
E dar mais corda
Num você diferente de você
Que só existe em mim

domingo, 5 de dezembro de 2010

Mosca varejeira


“Vou engarrafar essa dor, vou engarrafar a saudade, vou me embriagar de tristeza bendizendo ela vira beleza.”
(Eu não sou Chico mas quero tentar – O Teatro Mágico)


Alcholism Royalty Free Stock Photo
 

Estou bêbado
Bêbado de bebida mesmo
Tudo faz sentido
Nada é de verdade
Varejeirando sábados
Como se tudo fosse acontecer
E no final é tudo igual
A zunir o mais alto que podem
Na tentativa desastrada
De entorpecer todo o ar
Se por a não mais se indispor
Sem conseguir raciocinar
E gargalhar bolhas de álcool
Para voltar mais uma vez
A vomitar domingos e segundas

Despedida


“Não foi o começo quando nós chegamos aqui. Não será o final quando terminarmos. É um fragmento da vida, sem começo nem fim.”         
 (Strindberg)



- Oi…
- Oi … Tudo bem?
- Tudo. Não esperava te encontrar aqui.
- Eu gosto daqui.
- Por que você sumiu?
- Eu não sumi. Eu nunca sumo. Foi você quem nunca mais me procurou.
- Achei que você não queria ser encontrada.
- Se não quisesse não teria te dado o telefone no primeiro dia.
- Por que não retornou minhas ligações?
- Não tive vontade.
- Eu te fiz alguma coisa?
- Não. Fez nada não.
- Estou com saudade de você, do seu beijo, da sua voz, do seu cheiro.
- Estou indo pra Itália.
- Quando?
- Fim do mês.
- Por quê? Fazer o que? Com quem?
- Sempre quis ir para a Europa e acho que agora chegou a hora.
- Vai ficar quanto tempo?
- Um ano, seis meses, uma semana, não sei ainda.
- E vai fazer o que lá?
- Posso fazer o que eu quiser. Um curso de História da Arte em Florença, melhorar meu francês em Paris, uma especialização em Oxford. Posso fazer tudo, ou talvez nada disso e me arrepender e voltar.
- Por que agora?
- Eu não tenho o que perder. Posso muito bem largar o meu emprego mixuruca aqui. Arrumo outro depois se precisar. Família e amigos são pra sempre, não estou abandonando ninguém. Sei que todos vão estar do meu lado onde quer que eu esteja. Até porque não vou ficar por lá a vida inteira.
- Você vai com alguém?
- Você está vendo aquele moço loiro ali? Ele é um amigo meu. Na verdade um conhecido. Amigo da família, sabe? Ele é italiano e veio passar o fim de ano aqui no Brasil. Desde a outra vez que ele esteve aqui que ele ofereceu a casa dele na Itália e me convidou para ir com ele. Resolvi aceitar agora. A gente parte no final de janeiro.
- Ele faz o que?
- É médico em Roma.
- E você tem alguma coisa com ele?
- Não. Nada a ver. Não que ele não tenha tentado, mas não é o que eu quero.
- Você dormiu com ele?
- Nem beijar eu beijei. Por que? Faz diferença?
- Não sei. É você quem está indo embora com ele. Você deve saber.
- Falando assim parece que sou uma prostituta de luxo. Estou só indo na companhia dele e vou ficar na casa dele enquanto estiver na Itália. Vou pagar minha viagem e estou fazendo isso por mim. É só. Você sabe que eu não sou esse tipo de mulher. Já falamos sobre isso.
- Tem alguma coisa que eu possa dizer para você ficar?
- Minha mãe já tentou essa parte.
- Eu... eu me apaixonei por você.
- É a única coisa que você não podia ter feito. O que a gente viveu foi muito legal. Misturar amor e paixão nessa história não dá certo.
- O que você tem contra a se apaixonar?
- Nada contra. Só acho desnecessário.
- Como assim?
- A vida dá tantas voltas que às vezes eu fico até tonta. E nessas voltas a gente se apaixona e é só dar mais uma voltinha para desapaixonar. Sempre vai ter alguém partindo e sempre vai ter alguém chorando. É inevitável.
- Mas e tudo o que você pode viver quando está amando?
- Eu sei. São coisas lindas. Mas não valem à pena.
- Podem valer.
- É uma escolha, não é? É complicado isso. A gente sabe que depois de comer, muita coisa vai sair do corpo esgoto abaixo e que arrumamos a cama todas as manhãs para desarrumar à noite e ainda limpamos a casa e escovamos os dente e tomamos banho mesmo tendo a certeza que no final vai estar tudo do mesmo jeito, desarrumado, sujo, gasto. Trabalho jogado fora. Mesmo assim a gente continua fazendo essas coisas diariamente. Isso porque sabemos que precisamos fazer certas coisas. O resultado não importa, o que importa é o processo. E assim é a vida. Não é como ela vai acabar. Sabemos que ela vai acabar cheirando mal engavetada numa caixa de mármore. Nem por isso paramos de viver. Viver é o que acontece dia após dia. O mesmo é apaixonar-se. Sabemos que não vai acabar bem e mesmo assim nos aventuramos só para poder ter a sensação de ventinho na barriga de vez em quando. Acho louvável, mas não para mim. Acho que ainda posso viver sem brisas estomacais. Posso estar perdendo muita coisa, mas pelo menos não me frustro no final. Eu decidi não arrumar mais a cama, não escovar mais os dentes e não tomar mais banho quando o assunto é amor. Pelo menos por enquanto.
- Você não sentiu nada por mim?
- Claro que senti. Não tenho coração de pedra. Senti muito carinho, muita vontade de estar com você, muita vontade de você.
- Eu realmente gostei de você. Eu ainda gosto.
- Eu também gosto de você. Gosto do que a gente foi. Nunca fomos nada e ao mesmo tempo fomos tudo um para o outro. Não posso dizer que fui sua amiga, não tínhamos tanta intimidade assim. Também não fui sua namorada, definitivamente. Acho que nem sua amante eu fui, porque apesar da química louca de sair faíscas, nunca fomos até o final. Fomos nós, você e eu, conversando, rindo, beijando, passando o tempo, sentido coisas sem ter que se preocupar com nada. Passava horas com você no final de semana e não ficava ansiosa aguardando uma ligação no dia seguinte porque sabia que você poderia não ligar. E quando ligava eu ficava feliz. Sem expectativas, sem cobranças, você sendo você e eu sendo eu.  
- Isso te basta?
- Nesse momento da vida sim. Foi muito casual o que a gente viveu, muito solto e por isso só temos lembranças boas. Quando fecho os olhos e penso em você eu só me lembro das risadas que eu dava a cada bobagem que você falava. E lembro a minha pele arrepiada todas as vezes que você se aproximava da minha nuca. Lembro ainda as ligações no meio da madrugada e lembro as cômicas e frustradas tentativas que você tinha de me levar para cama e mesmo não conseguindo mantinha o bom humor e o carinho. Tive tudo isso ao seu lado, ia querer mais o que?
- Me ter do seu lado para sempre, e rir sempre, e sentir arrepio sempre que quisesse e se render ao tesão e parar de fazer jogo duro e quem sabe finalmente assumir de vez isso que a gente teve?
- E cair na rotina? E ter que cravar risadas mecânicas e perder os arrepios em beijos gelados e ainda por cima assumir o que nenhum de nós sabe o que é, ou foi? Não, nós não precisamos disso. Arnaldo Antunes já disse, “somos o que somos: inclassificáveis.” Se o mestre disse isso, quem sou eu para discordar?
- A gente poderia ter sido feliz.
- Nós fomos felizes. Do nosso jeito.
- Posso te dar um beijo de despedida?
- Esse não é você. Pedindo um beijo? Você nunca pediria um beijo.
- Fiquei com medo do carcamano mafioso.
- Sempre amei seu bom humor.
- Sempre amei você.
- Não fala mais nada.
- Não me deixa falar.