segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Paredes de gente


“Todos procuram alguém para brincar.
Todos procuram, mas não vão encontrar.”
(Sadô-Masô – Móveis Coloniais de Acaju)



De arquitetura moderna, era a casa mais bonita do quarteirão. Portão bege, ou seria amarelo claro? Era claro assim como o branco muro. Duzentos e vinte e oito torneados em números grandes no topo. Acima deles, uma cerca elétrica protegendo de possíveis infortúnios. Paredes brancas margeadas por um gesso grosso e decorado não apresentavam sinal algum. Ao centro, um lustre simples, mas belo garantia iluminação da garagem. No chão, o piso de mármore perdia o brilho para uma crosta de poeira e uma fila de panfletos de propaganda de supermercado. Do lado esquerdo, um terreno baldio com o matagal crescendo e empesteando a vizinhança. Do outro lado, outra casa, mas nem tão bonita assim. A porta de madeira com desenhos em relevo ostentando uma fechadura dourada vivia fechada.
A casa estava sempre sozinha, inabitada. Passava dias abandonada e noites na companhia de um carro. Era sempre assim, ele deixava o carro lá todas as noites e logo após, partia na rua escura. No outro dia vinha buscá-lo de manhã cedinho. Dia após dia, a mesma sequência desinteressante. Isso me intrigava. Eu passava horas olhando o portão daquela casa. O que será que teria lá dentro? E esse homem? Quem é esse homem que tem uma casa, mas não mora nela? Eu podia passar horas sentada na calçada divagando histórias mirabolantes sobre a moradia que não morava ninguém.
Todas as vezes que o homem chegava e abria o portão para deixar o carro, eu já fixava os olhos buscando qualquer indício, qualquer coisa que suprisse e alimentasse minha curiosidade. O máximo que consegui uma vez foi ver um canto da sala. Ele abriu a porta e a manteve assim durante um tempo porque resolveu voltar para a garagem para recolher a publicidade indesejada. Eu tentava esticar o olhar como se em meio a córneas, pupilas e conjuntivas pudesse haver lentes de binóculos que fossem capazes de aproximar a imagem do meu campo de visão. De tanto fazer esforço acabei vendo os pés de um sofá coral. Imagino que fosse inteiro coral, não pude ver tudo. Vi também um pano, acho que um lençol, cobrindo esse sofá do pó solitário. Com dores nos pescoço depois de uma ginástica de girafas, pisquei e encolhi os ombros já que agora ele fechava a porta, o portão e mais uma vez partia.
Uma casa, um carro, um sofá. Uma vida solitária marcada por desgraças. Um homem desafortunado com sorriso de cabide. Tinha construído a casa tijolo por tijolo com o suor da labuta de muitos anos. Era feliz, foi feliz, quer dizer, se sentia feliz às vezes. Depois de namorar doze anos a vizinha da rua de cima, decidiu se casar. Nesse momento posso dizer que a felicidade se tornou uma constante na vida do casal, na correria dos preparativos, igreja, flores, buffet, no crescimento da casa em alicerces, paredes, encanamentos, na experiência do amor, da pressa e da espera. Tudo caminhava para um casamento perfeito, como sonharam desde o primeiro encontro.
Três meses antes do grande dia a casa já estava quase pronta. Faltavam alguns arremates finais, acabamento, móveis, decoração, coisas que fariam aos poucos, depois da mudança. Já começavam a sentir um frio na barriga, tradicional em noivos apaixonados. O casamento poderia ter dado certo, talvez, ou talvez pudesse ter durado um mês apenas. Nunca saberão. A vida de uma pessoa nunca dura mais ou menos tempo do que o planejado, nem mesmo um casamento marcado pode assegurar minutos a mais de existência. A morte nada entende de casórios ou recepções, é alheia a sentimentalismos e convenções e não é bem vinda na maioria dos ambientes que frequenta. A noiva bem que tentou, mas nada pôde fazer para evitar que o casamento fosse cancelado. Debaixo das ferragens, lutou por alguns suspiros a mais, mas logo o branco do vestido gravado em sua mente foi tomando ares fumês, até escurecer de vez. O noivo, com o coração arrancado violentamente, quis partir com a amada e realizar esse casamento a qualquer custo, mas ainda não era a sua vez, e ele teve que esperar. E assim, ele espera, dias, meses, anos cuidando de uma casa vazia.
Espere, acho que não foi bem isso que aconteceu. Estou confusa. Poderia ter sido. Assim como poderia ter sido um adultério. A noiva pega em flagrante com o cunhado roçando os corpos em um sofá de cor coral. Ou então, ele, o noivo manteve um romance tórrido com uma cocotinha aproveitadora durante os últimos cinco anos e fora descoberto às vésperas de descer o corredor ao som de Ave Marias.
Inúmeras histórias podem ter acontecido e meu passatempo preferido é imaginá-las a cada vez que miro a casa abandonada com portas que se encontravam sempre fechadas. Fechado era também o sorriso de seu dono, não estava pronto e não queria receber visitas, nem em casa, nem em sua vida. Pode ser que não tenha sido nada disso que eu pensava e que casamentos e noivas nunca tivessem feito parte daquele homem. Pode ser que ele seja só assim mesmo, triste e nem se dê conta. Acho que nunca descobrirei a verdadeira história daquela casa e daquele homem e prefiro assim, prefiro não saber, para que eu possa continuar imaginando como é seu interior, cômodos e móveis, sentimentos e emoções. Por fora, são só paredes brancas.

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