quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Libélula

"Descobrimos sempre qualquer coisa que nos dá a impressão de que existimos."
                         (Esperando Godot - Samuel Beckett)


Sobrancelhas espessas e arqueadas. Um nariz fino que parecia desviar-se para a direita. Lábios carnudos envoltos por um bigodinho tímido acobertavam dentes pequeninos e amarelados. Pelos aparentes espalhados pela face salpicavam-lhe as maçãs. Orelhas distantes da cabeça, que era sustentada por um pescoço longilíneo. Olhos negros, opacos, perdidos. Essa era a imagem que Hércules vislumbra todas as manhãs ao levantar-se, dirigir-se ao banheiro e prostrar-se na frente do espelho tentando enxergar o outro lado.
Sem tirar os olhos do próprio reflexo, procura pela saboneteira, abre a torneira e passeia com a pedra se sabão de uma mão à outra até que bolhas saem da espuma que começa a se formar. Devolve o sabão à sua origem e leva as mãos ao rosto esfregando-o até atingir um tom esbranquiçado. Busca na gaveta a navalha fria e afiada e começa a cortar os pelos que lhe cobrem a face. Joga água fria na cara e com a toalha áspera se enxuga.
Volta para o quarto e sem muito esforço veste-se com a troca de roupas que havia separado na noite anterior: a camisa bege com botõezinhos e a calça marinho presa por um cinto fino de fivela dourada. Os sapatos já estão à espera ao lado da cama.
Dirige-se à cozinha e come metade de uma maçã aguada. Caminha até a sala e mecanicamente estica o braço até a mesa de centro e mune-se de sua maleta marrom desbotada. Tranca todas as portas. Está pronto. Mais um dia de trabalho. Mais um dia sem fatos heróicos para Hércules.
Os dias parecem ter sido feitos sob medida para ele em uma máquina de produção em massa. Nenhuma peça fora do lugar, nenhum parafuso solto, nenhum minuto mal calculado. Hércules estava condenado à prisão perpétua enjaulado em sua própria vida. Nem mesmo os fios de cabelo branco na barba serviram para emperrar a esteira.
Prostrado mais uma vez diante do espelho, numa manhã igual a todas as manhãs, Hércules é forçado a desviar o olhar do espelho para uma libélula de asas verdes e velozes pousada no topo da cabeleira desgrenhada. Num impulso, elevou o braço, mas se conteve no meio do caminho, baixando-o novamente. A libélula cessou o voo e Hércules passou a contemplá-la, a analisar cada detalhe: o corpo fino, as asas frágeis e eficientes, as patas imóveis. Por alguns segundos, a imagem que Hércules via refletida no espelho não era a sua, mas a de um corpo estranho que carregava um espírito novo, e naquele momento ele viu refletido naquela libélula seus sonhos, suas necessidades, seus anseios, suas esperanças. Segundos depois, a libélula voltou a por a asas em funcionamento e partiu pela janela entreaberta. Hércules acompanhou o voo até perder o inseto de vista e quando o fez, voltou a olhar para o espelho. Mais um dia sem feitos heróicos para Hércules. Ele ainda ficou a encarar o espelho por mais alguns minutos. Naquele dia, Hércules não fez a barba.

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