sexta-feira, 11 de março de 2011

Epifanias infantis


“Pode ser a eternidade má
Caminho em frente pra sentir saudade”
(Janta - Marcelo Camelo)



O coração pulsava sempre em cores de neon. Neon no mesmo tom, no mesmo ritmo do trenzinho que rodava a praça central e ressoava em alto volume músicas diversas enquanto luzes fluorescentes piscavam iluminando uma estrutura enferrujada. De longe já ouvia o velho trem cantar acompanhado por gritos e risadas. Ao perceber o alvoroço, corria para a esquina, o menino. Corria para ver o trem passar e ali, na esquina, ficava até o perder de vista e até o vento dissipar todo o som. Sentia às vezes vontade de estar lá em cima, mas contentava-se em vê-lo passar carregando homens-ursos em pelúcia e homens-palhaços em pintura sem nem botar reparo nos remendos e borrões das fantasias. Por ali ficava o domingo inteiro a seguir o trem com os olhos.
            Enquanto esperava o tal trem cumprir o seu caminho, o menino se distraia pisando nas cascas e sementes das árvores da velha praça e se deleitava com o barulho que elas faziam ao serem quebradas. Com uma vara nas mãos, mexia a terra em volta dos canteiros, fazia letras e desenhos tortos na areia do parquinho e se aproximava do bando de meninos que trocavam figurinhas para completar mais um álbum. Olhava tudo com muita curiosidade, cada gesto, cada figurinha, cada criança da roda. Sempre fora muito observador, não deixava que nada escapasse aos seus grandes olhos, e assim ia ajuntando imagens que colava na memória como um mural de fotos.
Eram aos domingos também que ia à missa no fim da tarde. Sentava-se logo nos primeiros bancos da igreja e ali acompanhava cada rito querendo entender o sentido e o motivo de todos os atos. Seu olhar somente se desviava do altar para alcançar uma senhora sentada quase que no mesmo rumo, mas do lado de lá do corredor. Vestia-se de forma peculiar, o que chamava a atenção do menino. Eram saias ou vestidos longos e sempre muito floridos. Ela tinha estatura baixa e corpo arredondado criando formas indefinidas coberta por sedas estampadas. Os seios eram fartos e o menino tinha a impressão de que carregá-los rua abaixo não era tarefa muito fácil. Na cabeça um emaranhado de cabelos, negros graças à farmácia do Boleli, presos por grampos e ramonas num coque desestruturado. Alguns fios escorriam pela nuca e pelos lados da cabeça cobrindo-lhe as orelhas. Nos pés, sapatos altíssimos que lhe custava o equilíbrio. Eram sempre coloridos para combinar com a estampa do vestido. Tinha nas mãos sempre uma bolsinha, ora de crochê, ora de couro envernizado. Nas mesmas mãos que carregavam a bolsa, um terço de contas de pérolas amareladas. E era isso que mais surpreendia o menino. A velha senhora sentava-se no banco da igreja e enquanto todos repetiam as orações, ela mexia a boca em um ritmo diferente, sempre a contar as pérolas em suas mãos. A boca não parava de mexer, nem mesmo durante o silêncio da assembléia. O menino parecia hipnotizado por aquela boca coberta por um vermelho ofuscante. Um pouco acima, uma pinta que parecia se mover com o abre e fecha da boca da velha. O menino passou a chamá-la de Dona Maria da Pinta. Raramente via a Maria da Pinta pela cidade, mas aos domingos às sete da noite sabia que iria encontrá-la.
Em um sábado parado teve a brilhante idéia de construir uma casa na arvore da praça. Reuniu algumas crianças que brincavam por ali e saíram à procura de madeira e instrumentos que pudessem servir para a construção. Conseguiram juntar alguns pedaços de madeira velha e foi só colocarem em volta da tal árvore para que o jardineiro ranzinza ralhasse com a molecada. Tiveram trabalho dobrado, pois o Seu Astolfo jardineiro fizera com que eles devolvessem cada estaca em seu lugar, uma canseira dos diabos. Sorte deles foi o Jeremias da padaria ter visto tudo. O Seu Jeremias era o dono da padaria que ficava em frente à praça. Era um senhor de meia idade bem vestido e que mesmo sem uma das mãos, acompanhava os trabalhos da padaria diariamente. Gostava de ficar na porta de seu estabelecimento conversando com os fregueses e distribuindo pães de queijo e doces para a meninada. Não tinha muito estudo o Seu Jeremias, mas o que tinha em abundância era vontade de trabalhar, tanto que era ele mesmo quem preparava os pães até o dia do acidente em que um dos cilindros lhe tirou a mão esquerda. Nem por isso se revoltara, pelo contrário, a falta de um membro lhe acresceu ternura, serenidade e generosidade. E foram esses sentimentos que levaram o tal do Jeremias da padaria a se compadecer dos meninos construtores. Ao ver o esforço dos pequenos, mais do que depressa providenciou a construção de uma casa na árvore em plena praça central. De construtores a soldados, marinheiros, piratas, astronautas, policiais e bandidos no refúgio amadeirado, onde passavam horas a fio inventando e se reinventando a cada cenário. Seu Jeremias, que do outro lado da rua os observava com um sorriso largo no rosto fazia agora parte das Ave-Marias tortas do menino.
Em um desses domingos, brincava o menino no QG do Seu Jota, como costumavam chamar a construção no topo da árvore. As crianças já iam esvaziando a praça enquanto a escuridão esvaziava o céu. Uma última olhada no trenzinho antes de partir, as luzes, as músicas, a alegria dos domingos. Quis chegar mais perto dessa vez para ver cada detalhe e chegou a ficar nas pontas dos pés na guia da calçada. Sentiu que o trenzinho se aproximava dele, cada vez mais e de tão entorpecido, ali ficou até cair de costas derrubado por aquilo que mais lhe encantava. O motorista do trenzinho animado se desesperou ao desviar de um louco motorista guiando na mão contrária e rodou com toda força a direção para o lado da calçada onde o menino se equilibrava. Na cabeça do menino muitos barulhos, músicas, sirenes, gritaria e choradeira. Imagens iam se completando, o mural ia tomando forma, decorado com Marias da Pinta, padeiros desmembrados, Astolfos, figurinhas, farmácias Boleli, bancos de igreja, árvores, muitas árvores, algodão doce colorido, instrumentos de fanfarra, andores de procissões, velas, e ali, bem no centro da montagem, um trenzinho fluorescente e cantante. Agora sim, era como achar a última peça do quebra-cabeça.

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