quarta-feira, 23 de março de 2011

Consulta

What’s the point in all this screaming?
No one’s listening anyway.
(No One’s Listening – Goo Goo Dolls)
Waiting in the Waiting Room
- Boa tarde.
- Boa tarde… Ela já abriu a porta uma vez, acho que está te esperando.
- Ah sim, vou olhar.
- Mas ainda tem gente lá dentro.
- Então é melhor esperar.
- É, a gente sempre tem que esperar, minha filha. É pelo convênio?
- É sim.
- Um absurdo esses convênios. Eu pago quase quinhentos reais para mim e para o meu marido. Quanto mais velho, mais caro.
- É verdade.
- E ainda pago as guias de consulta e os exames.
- Isso eu pago também.
- E ainda tem IPTU, IPVA, seguro do carro. Muita conta para pagar. A aposentadoria não dá não.
- É difícil mesmo, é tudo muito caro.
- O mês passado foi apertado. A gente vai ficando mais velha, tem fazer exame de sangue todo mês. Ainda bem que meu colesterol está controlado agora. Só o trigliceres, é trigliceres que fala?
- Triglicérides.
- Então, esse ai é que deu um pouquinho alterado, mas é só maneirar no doce. Porque minha caminhadinha eu faço todos os dias, nem que for em volta do quarteirão.  Comprei um tênis novo agora porque a sapatilha apertava meu dedo.  Essa unha minha aqui do dedão encravou esses dias, uma dor que só vendo.
- É, dói mesmo. Minha irmã também...
- Nossa que dor. E tem gente que ainda fala que unha não dói. A gente ainda usa essas chinelas que não valem nada, uma porcaria. Só servem para encardir os pés, não protegem nada. Se eu fosse ver a minha dor, não tinha nem ido no cruzeiro.
- A senhora fez um cruzeiro?
- Minha filha pagou para mim porque eu não tenho condições. Minha filha é médica, trabalha em São Paulo.
- Ah, que bom.
- É, mas a vida em São Paulo é corrida. Ela acorda muito cedo. É tudo muito longe, ônibus, metrô. Coitada da minha filha.
- Eu tenho uma prima que também é médica em São Paulo. Ela trabalha no...
- É plantão todo dia. Ela fez faculdade em Viçosa e depois conseguiu emprego em São Paulo. Ela gosta demais do trabalho.
- Isso que é importante.
- Ela tirou folga para ir para o cruzeiro. Fomos nós todos, meu marido, minha filha, meu menino mais novo e eu. Esse meu filho faz Engenharia. Estuda em São Carlos, no último ano. É inteligente, precisa ver.
- Eu imagino.
- A gente quase não sai de casa, meu marido e eu. Como minha filha convidou a gente foi nesse cruzeiro. Nunca tinha andado de barco.
- E a senhora gostou?
- Ah gostei demais. Nem senti enjôo, porque tem gente que passa mal, você sabe, né?
- Dizem que é bom comer maçã...
- Eu até esquecia que estava no mar. Ainda bem que já fui porque se fosse agora não teria coragem. Com esses tsunamis.
- E qual foi o trajeto?
- Ué, no Japão. E teve em... como é que é mesmo... é... Angra dos Reis.
- Não, o trajeto do cruzeiro. Para onde a senhora foi?
- Ah, foi Santos, Bahia, o Nordeste, né?
- Que bom. Eu não conheço o Nordeste. Dizem que...
- Mas minha filha é muito boa para mim. Ela também ajuda a pagar todos os remédios. Semana passada mesmo eu tirei esses dois dentes aqui de trás, está vendo aqui? Tem ponto ainda. Eu tive que comer só sopinha, líquido, sabe?
- É, tem que cuidar direito. Eu também já fiz...
- Já faz um mês que eu estou tomando antibiótico e ainda tem o remédio da pressão porque minha pressão é um pouco alta.
- É, muito remédio, né?
- Então menina, dá uma fraqueza. A gente sente mal com esse tanto de remédio. Aí, eu levanto cedo, já tomo banho porque eu gosto de levantar e já dar uma enxaguadinha, a gente fica mais bem disposta. Depois eu como uma torradinha para não ficar com o estômago fundo e já tomo o da pressão.
- Tem sempre que comer alguma coisa antes. Quando eu tomo remédio...
- E o tanto que é caro remédio. Eu ainda compro aqueles lá que eles falam, é genérico, né? Mas ainda assim. Mês passado foi meu marido que fez implante dos dois dentes da frente aqui. O dentista receitou um líquido lá para fazer gargarejo. Quando foi esse mês fiz minha cirurgia. Estou até com os pontos ainda. Sobrou lá em casa o gargarejo do meu marido, mas eu mandei fazer outro para mim. A gente nunca sabe, né?
- É, remédio vencido pode ser perigoso.
- Mas eu não comprei do mesmo não. Mandei, é... manipular que eles falam, não é isso? Então, eu mandei manipular na farmácia perto de casa. É a mesma coisa, mas fica mais barato.
- Verdade.
- E essa televisão que é sempre a mesma coisa. Não tem nada que presta, uma bobajada.
- Cada dia pior. Domingo é que...
- Lá em casa a gente raramente assiste. Eu prefiro meu crochê, meu marido tem as revistinhas de caça palavras dele e a gente vai se distraindo. Fazer o que não é? Com a idade chegando, a gente tem que se contentar com isso mesmo.
- É sempre bom ter um passatempo, distrai a cabeça.
- O pior é que para tudo eu tenho que por óculos. Não enxergo mais nada de perto. De longe, como daqui até aí onde você está ainda vejo, mas de perto fica difícil.
- A gente vai perdendo mesmo a visão com o tempo.
- E olha que toda a vida eu enxerguei bem.
- Mas é assim mesmo, minha mãe...
- Tem que conformar, não é? Estar vivo é o que basta. O resto a gente vai dando um jeitinho Tanta gente pior por aí. Eu dou graças a Deus, mesmo com as minhas dores.
- É.
- Dona Nadir, o doutor está esperando, pode entrar.
- Com licença, meu bem. Até mais.
- Até.  

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